domingo, 26 de fevereiro de 2012

OS AVANÇOS DE UM ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL - REVISTA NOVA ESCOLA

 
Os avanços de um aluno com deficiência intelectual

Aos 7 anos, este garoto atento ao exercício nem sequer pronunciava o próprio nome: Henrique. Sua família pouco sabia como ajudá-lo. Na escola, ele pôde conhecer a si mesmo, o manejo das coisas, as outras crianças... Estudar foi a primeira porta aberta para o desenvolvimento, que ele encontrou num ensino que respeita o tempo de cada um

"Antes, jogos, letras e cores não queriam dizer
nada para mim...mas agora, que estou na
escola, fazem parte da minha vida" Henrique
Michel da Silva, 10 anos.
Foto: Gustavo Lourenção
"Hoje a escola é a sua casa", conta Regina Graner, professora da 4ª série da EMEF Professor Taufic Dumit, em Piracicaba, a 160 quilômetros de São Paulo."Ele conversa, participa das aulas e troca idéias com os colegas."Para Henrique Michel da Silva, é uma grande conquista. Aos 10 anos, está aprendendo a comandar a própria vida, que antes era dominada pela deficiência mental.Além de ter dificuldade para falar e se fazer entender, ele não conseguia comer nem se vestir sozinho. Sua mãe achava isso um impedimento insuperável."Ele sempre foi mais lento para aprender as coisas", justificava a dona-de-casa Elisângela de Fátima Oliveira da Silva quando era indagada pela professora do filho.
Elisângela não imaginava do que Henrique seria capaz se fosse incentivado de maneira adequada. Foi com a ajuda da professora Marta Giuste da Silva, na 1a série, que ele conseguiu dizer seu nome claramente pela primeira vez. "Comecei um trabalho com ele desde a pronúncia", diz a educadora. Daí em diante, o processo deslanchou. O menino revelou-se um dedicado aprendiz na sala de aula, daqueles que não se calam cada vez que têm uma dúvida. Ao mesmo tempo, a professora conversou muito com a mãe de Henrique e conscientizou-a de que a escola regular tinha a obrigação de receber seu filho.
Na sala de apoio, o garoto contou com uma professora para ajudá-lo a se desenvolver no que tinha mais dificuldade. Com o tempo, passou a ler histórias por meio de imagens e a contá-las aos amigos. "Ele já monta pequenas frases, desenha e organiza livrinhos", diz a educadora especializada Maria Aparecida Valelongo Cunico.
Há pouco tempo, o destino provável de Henrique seria uma classe só com crianças com o mesmo quadro de retardo mental.Hoje, seu direito de estudar na escola regular vem sendo respeitado, ainda que falte à maioria das pessoas entender o que é deficiência mental."É um atraso na adaptação ao aprendizado, ao convívio social e às funções motoras", explica o psiquiatra José Belisário Cunha, da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil (Abenepi), em Belo Horizonte.
Quem tem deficiência é capaz de muita coisa: ler, escrever, fazer contas, correr, brincar e até ser independente. "A grande novidade é que, se a criança for estimulada a descobrir seu potencial, as dificuldades deixam de persistir em tudo o que ela faz", afirma Belisário. Ou seja, ela precisa de novos desafios para aprender a viver cada vez com mais autonomia. E não há lugar melhor do que a escola para isso. Qual o papel do professor nessa história? Em primeiro lugar,bancar o desconfiado. O diagnóstico de deficiência mental não determina o potencial da criança. "Pode ser que o aluno não apresente na escola os problemas que tem em casa. Isso resulta, muitas vezes, da falta de acompanhamento da própria família", diz Belisário. Por exemplo, como uma criança consegue desenvolver a fala se a família não conversa com ela?
Nas aulas de leitura, a professora aproveitava a empolgação de Henrique para ajudá-lo a se desinibir na frente dos amigos."Ele foi se soltando até conseguir divertir a turma toda com uma história", diz ela. O garoto dava um toque de emoção às tramas, como quando encenava o sopro do lobo na casa dos três porquinhos. "A classe toda aplaudia", lembra Marta.Henrique nunca faltou a uma só aula.

Ígor tem espaço para desenvolver suas melhores
habilidades na escola: ao mesmo tempo que treina
oralidade por meio da leitura e da contação de
histórias, mostra-se fera na associação de
imagens exigida em jogos de memória.
Foto: Gustavo Lourenção
Independente desde cedo

É muito comum a família de uma criança com deficiência querer fazer tudo por ela. "É difícil se conter diante das dificuldades", diz Belisário. "Mas na escola, no meio da garotada, qualquer um aprende a se virar sozinho." Para o psiquiatra, as instituições e classes especiaisnão colheram grandes frutos justamente por terem assumido o papel de protetoras. Ir ao banheiro sozinho, fazer exercícios em grupo e brincar no recreio são estímulos que contribuem para o desenvolvimento intelectual do aluno.
O casal de agricultores gaúchos Marlene e Reni Wasen, da cidade de Sapiranga, na Grande Porto Alegre, soube de antemão que seu filho viria ao mundo com síndrome de Down,provocada por uma anomalia genética. Ígor Wasen, 9 anos, aprendeu muita coisa desde cedo.Começou a andar com 1 ano e 7 meses e parou de usar fraldas quando ainda era bebê.Na creche, tomava banho e vestia-se sozinho. Ele cresceu e continuou independente.
Nos bailes da cidade, aonde vai até hoje com a família, desgarra-se dos pais para dançar e comprar refrigerante. "Não se perde nem no meio de mil pessoas", diz a mãe. Quando não tem muita lição de casa, o guri se oferece para ajudar os pais a carregar lenha.
Mesmo com esses precedentes animadores, o garoto surpreendeu Marlene e Reni quando escreveu seu nome logo no início da 1a série da EMEF Pastor Frederico Schasse, em Morro Reuter, a 80 quilômetros da capital gaúcha. Ígor já escreve um pouco em português, mas, na hora de falar, o idioma alemão é praticamente lei na comunidade onde vive."Só falamos português quando tem visita", diz a mãe.
Em decorrência da síndrome de Down, o menino tem alguma dificuldade de se expressar. Ainda bebê, começou a ir à fonoaudióloga na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) para tratar o distúrbio.Até hoje, visita uma especialista toda semana.
E, na sala de aula, dá-lhe ouvir histórias. Assim, a professora Dirce Sauzen o estimula a conversar sobre elas com os colegas.
Ígor ainda tem pouca destreza com as letras, mas se sai muito bem em jogo de memória e no quebra-cabeças. Quando percebeu a facilidade do garoto para associar pecinhas, a professora aproveitou para reunir materiais que tivessem desenhos, palavras e números. "Ele consegue resolver mais rápido os exercícios que exigem montagem e organização", conta Dirce.
Danielle adora dançar, fazer teatro e, no atletismo,
já participou de várias corridas: "Sou o orgulho
dos meus pais". Foto: Gustavo Lourenção
Atleta, atriz e bailarina
Ígor é prova de que a deficiência pode falar mais alto numa habilidade, mas pouco influi em outras."Se um aluno se dá mal em Matemática, pode ter afinidade em área que não depende do raciocínio lógico", afirma Belisário. A maranhense Danielle Batista Gonçalves, 17 anos, passou 12 deles na Apae por causa da síndrome de Down. Sua evolução foi mais lenta que a de Ígor.Começou a andar aos 7 anos e a falar aos 9. Aos 12, escreveu o nome pela primeira vez."Foi aí que me dei conta de que ela precisava estudar", diz a mãe,Maria Lucimar Batista Gonçalves. Hoje, na 8a série da Unidade Integrada Rubem Goulart, em São Luís, a adolescente posa orgulhosa para fotos ao lado dos troféus que conquistou em duas competições de maratona feitas nas ruas da cidade. A campeã nunca deixou de ir à Apae, onde faz cursos e apresentações de dança e teatro. "Gosto muito de atividade física. Só Matemática que acho difícil", diz Danielle.
O ingresso na escola regular não foi nada fácil.Até hoje a menina chora quando não consegue responder oralmente a uma pergunta."Ela se sai melhor com questões de múltipla escolha", diz o professor de Geografia Daniel Mendes Pereira, que sempre pensa numa maneira de a estudante participar dos exercícios sem medo.Nas aulas de Língua Portuguesa, a afinidade da jovem com a escrita rendeu até um prêmio no festival de poesia da escola.
Maria Lucimar sempre se dedicou à filha. Colocou-a na Apae aos 8 meses sem esperar que ela fosse aprender algo.Um dia, ela e o marido, pais adotivos da menina, leram no jornal que crianças com deficiência teriam o direito garantido de entrar na escola regular.Agora,Maria Lucimar desata a falar das qualidades da filha: "Ela conversa bem, participa dos trabalhos, é aplicada nos deveres, pesquisa nos livros e ganha prêmios". E se derrama em lágrimas quando vê Danielle dançar.

http://revistaescola.abril.com.br/inclusao/educacao-especial/tempo-cada-424559.shtml

Débora Didonê mailto:novaescola@atleitor.com.br)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

PARA REFLETIR: TESOURO ESCONDIDO


UM TESOURO ESCONDIDO

Certa vez um homem sonhou que seu vizinho tinha um balde cheio de moedas antigas valiosíssimas, a maioria de ouro, escondido no fundo do poço que ficava no quintal da casa dele. Pensou consigo mesmo: “Que sonho estranho!”.
Na outra noite, sonhou novamente com o tesouro escondido sob as águas e pensou: “Que coincidência, sonhei de novo!”.
Na terceira noite o sonho se repetiu, e ele pensou: “Deve ser um sinal divino”.  E começou a planejar o que fazer para ter o tesouro para si. Planejou comprar a casa do vizinho, mas o sujeito não queria vender de jeito nenhum. E se ele fosse de noite procurar o tesouro? Poderia ser preso. Decidiu achar outra maneira de conquistá-lo. Depois de semanas sofrendo e desistindo de todos os planos mirabolantes que criava, acabou decidindo compartilhar seu sonho com o vizinho caso esse concordasse em repartir as moedas.
– Vizinho – disse com alegria – se eu lhe disser onde você pode achar um tesouro, você o reparte comigo?
– Um tesouro de verdade? Ouro?
– Sim, ouro e moedas antigas mais valiosas que o ouro. Um verdadeiro tesouro.
Está bem, combinado. Onde está?
Sonhei várias vezes que você tem um balde cheio de raríssimas moedas de ouro no fundo do poço, lá no seu quintal.
O homem soltou gargalhadas debochadas que poderiam ser ouvidas a quilômetros de distância.
– Sonhou? Você sonhou? Que ingenuidade! Se eu acreditasse em sonhos já teria invadido seu porão, pois há anos sonho que embaixo dos tijolos da sua adega há um tesouro escondido. Mas isso é só sonho!
– É verdade. Acho que estou sendo ingênuo. Deixa pra lá! Até outra hora, vizinho.
Correu para sua adega, retirou os tijolos da base e descobriu um tesouro. Havia sim uma caixa cheia de moedas raras, rubis, diamantes e outras joias. Deveria estar lá havia centenas de anos, no entanto, ele apenas tomou posse da riqueza que já lhe pertencia quando compartilhou seu sonho com o vizinho.


Todos nós temos em nossas vidas belos tesouros escondidos. São experiências positivas, outras negativas, mas que nos trazem reflexões e mudanças de comportamento que tornam nossa vida melhor.
E o que você tem feito com esse aprendizado? Quantos de seus colegas de trabalho, amigos ou familiares podem estar cometendo os mesmos erros que você já descobriu como evitar, por desconhecer o que você já sabe? E por outro lado, as descobertas que eles já fizeram não lhe seriam úteis, se compartilhadas?
Desafio você a mudar esse quadro, a quebrar o ciclo! Compartilhe suas experiências com outras pessoas e abra-se para críticas e sugestões.
            Sua história de vida é única e especial... com seus altos e baixos, tristezas e alegrias, ousadias e arrependimentos, risos e choros. É um tesouro escondido que pode enriquecer sua vida caso você decida tomar posse dele. Para isso, só há um caminho: compartilhar.

Marcos Meier é escritor, palestrante, professor e psicólogo. Suas obras se encontram na loja virtual: http://www.kapok.com.br/

domingo, 19 de fevereiro de 2012

IV CICLO INTERNACIONAL DE CULTURA E RESILIÊNCIA - SOBRE RESILIÊNCIA: QUESTÕES TEÓRICAS

SOBRE RESILIÊNCIA: QUESTÕES TEÓRICAS
Desenvolvida no campo da física, a noção de resiliência é utilizada para
pensar a resistência dos materiais ao choque e sua possibilidade de retorno,
após o impacto, ao estado inicial. Ocorre que, no campo do humano,
a turbulência produz novos efeitos subjetivos imprevisíveis; não poderíamos
pensar na possibilidade de se passar por um grande choque, um evento
traumático, e voltar ao estado anterior.
A pessoa que vive uma situação potencialmente traumática tem sua subjetividade
alterada: para sobreviver, ela precisa colocar em ação mecanismos para se adaptar
à dor, física ou psíquica, e suportá-la; para encaixar na vida dita normal as  marcas
de seu esforço de sobrevivência; para conviver com a impossibilidade de
compartilhar com os outros a intensidade de uma vivência quase  incomunicável.
É preciso, então, lidar com esse conceito como uma metáfora e reter dessa
construção da física a idéia de que a resistência que esses materiais
apresentam está diretamente ligada à sua flexibilidade. Esta é a razão
pela qual os primeiros estudos sobre a resiliência têm sido alvo da crítica
de boa parte dos pesquisadores contemporâneos, já que identificavam
esta possibilidade de superação a condições adversas, apresentadas por
 algumas crianças, como uma capacidade interna, compreendida como
 invulnerabilidade ao choque.
Pouco a pouco, as pesquisas foram considerando a influência do meio,
dos fatores sociais no fenômeno da resiliência. Uma conseqüência é sua
visão como um processo e não como uma característica do indivíduo.
A outra é a relativização das noções de risco e proteção. Constata-se
que o fato de se identificar a presença de fatores de risco não define
a ocorrência ou não do trauma; tampouco a existência de fatores de
proteção garante a ocorrência da resiliência.
A consideração da interação do sujeito com a ecologia de seu entorno
leva à análise do risco como uma situação, como tal, sempre mutável de
pessoa para pessoa e mesmo para uma mesma pessoa, em momentos
diferentes de sua vida.
Desloca também a identificação de fatores para a análise de mecanismos
de proteção em sua complexidade.
Outra importante conseqüência trazida pela abordagem ecológica da resiliência
consiste na crítica da identificação desse fenômeno com a adaptação positiva à
adversidade. A relevância dessa crítica deve-se à facilidade de utilização
ideológica do elogio da criatividade e da utilização de recursos pessoais
 para a o enfrentamento situações de adversidade que exigiriam não uma
resposta de adaptação, mas, ao contrário, deveriam contar com a recusa,
a resistência e a indignação do sujeito exposto à privação, como forma de
 suscitar a responsabilidade social aí implicada.
O mecanismo de favorecimento a uma atitude resiliente seria exatamente a
oferta de recursos que possibilitassem saída da imobilidade provocada pela
 dor e o conseqüente retorno a um estado de potência, de vitalidade e
 atividade do sujeito.
Outra expressão das análises dualistas entre pólos positivos e
pólos negativos que transitam nas pesquisas sobre resiliência é sua
freqüente articulação com os conceitos de estresse e coping. Nesse caso,
o estresse, definido como uma relação particular entre a pessoa e o ambiente
que é apreciado por ela como excedente aos seus recursos, o que coloca
em perigo seu bem-estar (Lazarus &Folkman, in Yunes e Szymansky, 2002),
seria o pólo negativo. A administração do estresse constitui o coping,
definido como um conjunto de esforços cognitivos e comportamentais
 utilizados com o objetivo de lidar com demandas específicas, internas ou
externas, que surgem em situação de estresse e são avaliadas como sobrecarregando
 ou excedendo os recursos pessoais (idem ibidem).
Dessa forma, o coping bem sucedido constituiria uma resposta positiva ao
estresse, capaz de aliviar os aspectos negativos das situações de estresse
ou risco. Identificado em alguns estudos como resiliência, ele se expressaria
por manifestações de competência apesar da exposição a eventos estressores
(Garmezy, Masten & Tellegen, in Yunes e Szymansky, 2002), isto é, em termos
 aquisição  de competência social.
Em geral, os critérios avaliativos baseados na noção de competência social
para configurar o coping bem sucedido consideram o sucesso como sinônimo
de estar em consonância  com as expectativas sociais. Esse sucesso em se
adequar às normas sociais, obter bom desempenho acadêmico e de
sociabilidade pode ser realizado simplesmente com o objetivo de agradar
 e ser aceito, configurando o que  Martineau (1999),,  denomina resiliência
performática. Uma das possibilidades de resposta adaptada é, portanto,
uma espécie de normopatia. Por outro lado, a busca de uma adaptação
ativa ao ambiente, a procura pelo acolhimento pode expressar-se em
comportamentos agressivos, mesmo delinqüentes, na busca de
encontros que possam ter ação recuperadora de um espaço
para atividade criativa.
Um dos objetivos dos estudos mais recentes sobre a resiliência
tem se concentrado portanto em definir sua especificidade diante
 de tantos temas similares. Uma peculiaridade fundametal refere-se
ao fato de que os mecanismos de resiliência estão sempre referidos
como resposta à ocorrência de um traumatismo.
Podemos compreender o trauma como a impossibilidade de
responder de forma eficaz a um impacto do ambiente, que
traz um excesso de informações e estímulos impossível de ser
 processado. É a possibilidade de processamento que o difere
do estresse. A intensidade de um evento traumático não
comporta administração cotidiana. Provoca no sujeito uma
 imobilidade de respostas, muitas vezes expressa não exatamente
 na inatividade, mas na repetição de comportamentos,  reações
ou padrões de relacionamentos. A definição de resiliência proposta aqui é sua configuração como uma das possíveis respostas ao trauma, mas com peculiaridade de trazer a possibilidade de retomada a algum desenvolvimento.
O desenvolvimento é entendido aqui como o rompimento da
cadeia de repetições imobilizadores instaurada pelo trauma,
o que permitiria colocar esse sofrimento na cena do circuito
social, possibilitando assim transformá-lo de uma violência sem
sentido em uma reação plena de significação e plasticidade,
ainda que afetada pela dor.
O que faz do trauma uma vivência insustentável não é a situação
potenciamente traumática, mas o que acontece depois dela, 
a maneira com que se pode lidar com seu impacto, com suas
lembranças, os caminhos através dos quais se pode contar
com a sustentação e ajuda de outras pessoas.
A noção de invulnerabilidade não é, portanto,  boa estratégia
para uma metodologia de análise da resiliência, pois o que pode
antagonizar com as forças traumáticas são novas marcações que
produzem/instauram espaço para a vitalidade.
Nesse sentido, o mecanismo necessário para escapar ao trauma
é exatamente o contrário: é a possibilidade de se deixar marcar,
de compor um sentimento de confiança de que é possível lidar
com a tensão, inscrevê-la num circuito de trocas com o outro,
de forma que tanto a dor quanto o desejo possam ser sustentados.
O debate sobre a resiliência apresenta-se então como uma das
 formas de investigação a respeito da articulação entre redes
 sociais e práticas de inclusão.
A situação cotidiana de privação a que vemos submetida
grande parte da população em nosso país, e em tantas outras
 áreas onde a precariedade é norma, não nos permite o conforto
de esperar que a solução esteja numa capacidade pessoal de
resistência a uma realidade com tal potência traumática.
Por isso tenho considerado com muito cuidado a crítica apontada
aos primeiros estudos sobre a resiliência, que identificavam esta
possibilidade de superação como uma capacidade psicológica
 interna, individual, compreendida como invulnerabilidade ou
como uma habilidade de adaptação positiva ao choque.
O que pode antagonizar com as forças traumáticas é exatamente
o contrário disso: é a possibilidade, de alguma forma instaurada
na experiência do sujeito, de se deixar afetar por novas vivências,
experiências capazes de produzir espaços de restauração de sua
 força vital. Isto só é possível com a participação de um outro
interessado em investir nessa contra-corrente ao movimento
dos efeitos traumáticos, interessado em provocar uma reação
ativa e não uma adaptação passiva.
O mecanismo de favorecimento a uma atitude resiliente teria
então que se dirigir ao estabelecimento de recursos, produzidos
 pelo ambiente, de acolhimento, isto é, de negociação com as
 forças produzidas pela adversidade – revolta, isolamento,
resignação subserviente, vergonha, ódio e medo - para a saída 
da  imobilidade provocada pela dor e pela desesperança, e o
conseqüente retorno a um estado de potência, de vitalidade e
atividade do sujeito.
Estamos falando de um mecanismo não meramente psicológico,
mas de políticas do cotidiano para construir o espaço de retomada
a algum desenvolvimento, a retomada do movimento de
investimento na vida, para além da sobrevivência; aquilo que
possibilita transformar uma violência sem sentido e sem resposta
em uma reação plena de significação e plasticidade,
ainda que afetada pela dor.
Segundo Boris Cyrulnik (2007), o processo de resiliência estaria
 então ligado a três aspectos fundamentais: a aquisição de
recursos internos que se desenvolvem desde os primeiros
meses de vida; o tipo de agressão, ferida, falta e, sobretudo,
a significação dessa ferida no contexto da pessoa; e,
finalmente, os encontros, as possibilidades de  apoio
e ressignificação da experiência traumática. 
Stefan Vanistendael aponta ainda: redes de ajuda social,
a possibilidade de encontrar um sentido para a vida ,
a construção do amor-próprio e o senso de humor.
Acrescentaríamos: a possibilidade de encontrar um meio
de expressão para a intensidade emocional da experiência
traumática ou de adversidade, que pode ser dar através
a arte, da cultura ou do esporte; a importância de cada
encontro com as outras pessoas, ou com a literatura,
com a possibilidade enfim de vislumbrar outras formas
de lidar com a adversidade encontrada na experiência de
outra pessoas, e que pode revelar capacidades próprias
antes desconhecidas; cada encontro –com amigos, educadores,
profissionais de saúde ou mesmo familiares - pode significar
uma possibilidade de reparação das marcas de situações de
extrema adversidade ou trauma.
Pensar assim traz uma chance a mais mesmo para aquelas
crianças que não desenvolveram recursos internos desde a
tenra infância e que são submetidas ao traumatismo cotidiano
e banalizado da realidade adversa de um país como o Brasil.
Tal abordagem sobre a resiliência afasta-nos de uma concepção
 assistencialista; pelo contrário, trabalha no sentido de
procurar os movimentos, os territórios, as relações,
os pequenos eventos do cotidiano que, articulados
(nem sempre didaticamente articulados), fazem a
composição um sentimento de confiança de que é
possível lidar com a tensão, inscrevê-la num circuito
de trocas com o outro, de forma que tanto a dor quanto
 o desejo de transformação possam ser sustentados.
A idéia não é a de produzir sujeitos resilientes, possuidores
 de uma identidade de resiliência, mas marcas de resiliência,
matrizes de onde se poderia multiplicar a potência de agir – e,
às vezes de produzir alegria, adaptação ativa, encontro –
ao longo da vida.
Temos ouvido objeções quanto à utilidade do conceito de
resiliência. Entretanto, em meu trabalho no campo da educação,
pesquisar este tema tem sido bastante útil para discutir estratégias
cotidianas de superação, de enfrentamento, de desidealização da
 harmonia – que freqüentemente se traduz em apatia -, de
valorização da tensão dos encontros como produtora de novos
recursos, da importância de insistir no investimento na vivacidade do cotidiano.
Num país como o Brasil, em que as políticas públicas não
asseguram formas de atendimento ao traumatismo cotidiano,
 insidioso, banalizado pela repetição a que são submetidas vastas
populações de crianças e adolescentes em situação de rua, ou de
 total precariedade de condições de permanência na escola pública,
ou de maciço abandono no atendimento sanitário e de saúde pública,
é de fundamental importância colocar em discussão e em
articulação as iniciativas, tanto no campo da pesquisa,
quanto no campo das ações sociais, de enfrentamento
dessa alarmante realidade social.
É igualmente importante abrir espaços um diálogo
crítico do impacto social de cada uma das opções metodológicas
e estratégias de ação desses grupos.