terça-feira, 13 de novembro de 2012

MESTRADO E DOUTORADO: O QUE FAZER QUANDO HÁ CRISE?

O que fazer com os estudantes e cientistas que não conseguem estudar e pesquisar?
Sergio Arthuro (1)

A imagem de nós cientistas no senso comum, como estereotipada por Einstein, é que somos meio loucos. De fato, como revelado recentemente pela revista Nature, parece que realmente não temos uma boa saúde mental, dada a alta ocorrência de depressão entre pós-graduandos e pós-doutorandos.

Os pós-graduandos são os estudantes de mestrado e de doutorado, enquanto os pós-doutorandos são os recém doutores em aperfeiçoamento, que ainda não conseguiram um emprego estável. Os pós-doutorandos são comuns há muito tempo nos laboratórios da Europa e dos Estados Unidos, já no Brasil este é um fenômeno recente.
Segundo o texto, boa parte dos estudantes de pós-graduação que desenvolvem depressão foram ótimos estudantes na graduação. Lauren, doutoranda em química na Universidade do Reino Unido, começou com dificuldade em focar nas atividades acadêmicas, evoluiu com medo de apresentar a própria pesquisa, e terminou sem nem mesmo conseguir sair da cama. Felizmente, Lauren buscou ajuda e agora está terminando o seu doutorado, tendo seu caso relatado no site de ajuda Students Against Depression, cujo objetivo é “desenvolver a consciência de que a depressão não é uma falha pessoal ou uma fraqueza, mas sim uma condição séria que requer tratamento”, segundo a psicóloga Denise Meyer, que ajudou no desenvolvimento do site.
Para os cientistas em início de carreira, a competição no meio acadêmico pode levar a isolamento, ansiedade e insônia, que podem gerar depressão. Esta pode ser acentuada se o estudante de pós-graduação tiver problemas extracurriculares e/ou com seu orientador. Já que a depressão altera significativamente a capacidade de fazer julgamento racional, o deprimido perde a capacidade de se reconhecer como tal. Aqui, na minha opinião, o orientador tem um papel fundamental, mas que na prática não tenho observado muito: não se preocupar apenas com os resultados dos experimentos, mas também com a pessoa do estudante.
De acordo com o texto, os principais sinais de depressão são: a) inabilidade de assistir as aulas e/ou fazer pesquisa, b) dificuldade de concentração, c) diminuição da motivação, d) aumento da irritabilidade, e) mudança no apetite, f) dificuldades de interação social, g) problemas no sono, como dificuldade para dormir, insônia ou sono não restaurativo (a pessoa dorme muito mas acorda cansada e tem sono durante o dia).
Segundo o texto, a maioria das universidades não tem um serviço que possa ajudar os estudantes de pós-graduação. Não obstante, formas alternativas se mostraram relativamente eficazes. Por exemplo, mestrandos e doutorandos poderiam procurar ajuda em serviços oferecidos a alunos de graduação; já os pós-doutorandos poderiam tentar ajuda em serviços oferecidos a professores, sugerem os autores do texto. A maioria dos tratamentos requer apenas uma sessão em que são discutidas as dificuldades dos estudantes, além de sugestões de como manejar melhor a depressão. Uma das principais preocupações é com relação à confidencialidade, que deve ser quebrada apenas se o profissional sentir que o paciente tem chance iminente de ferir a si ou a outrem. Segundo Sharon Milgram, diretora do setor de treinamento e educação do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, “buscar ajuda é um sinal de força, e não de fraqueza”.
Devo admitir que o texto chamou minha atenção por me identificar com o tema, tanto na minha própria experiência, quanto na de vários colegas de pós-graduação que também enfrentaram problemas semelhantes. Acho que o sistema atual de pós-graduação tem falhas que podem aumentar os casos de depressão, como as descritas a seguir:

1- O próprio nome “Defesa” no caso do doutorado
Tem coisa mais agressiva que isso? Defesa pressupõe ataque, é isso mesmo que queremos? Algumas pessoas vão dizer que os ataques são às ideias e não às pessoas. Acho que isso acontece apenas no mundo ideal, porque na prática o limite entre as ideias e as pessoas que tiveram as ideias é muito tênue. Mas pior é nos países de língua espanhola, pois lá a banca é chamada de “tribunal”.

2- Avaliações pouco frequentes
Em vários casos, principalmente no começo do projeto, as avaliações são pouco frequentes, o que faz com que o desespero fique todo para o final. No meu caso, os últimos meses antes da “Defesa” foram os piores da minha vida, pois tive bastante insônia, vontade de desistir de tudo etc. Pior também foi ouvir das pessoas que poderiam me ajudar que aquilo era “normal” e que “fazia parte do processo”… Isso não aconteceu apenas comigo, mas com vários colegas de pós-graduação. Acho que para fazer ciência bem feita, como todo trabalho, tem que ser prazeroso, e acredito que avaliações mais frequentes podem evitar o estresse ao final do trabalho.

3 – Prazos pouco flexíveis
Cada vez mais me é claro que a ciência não é linear, e previsões geralmente são equivocadas. Dessa forma, acredito que não deveria haver nem mestrado nem doutorado com prazo fixo. O pós-graduando deveria ter bolsa por 5 anos para desenvolver sua pesquisa, e a cada ano elaboraria um relatório sobre suas atividades e resultados. Uma comissão deveria julgar esse relatório para ver se o estudante merece continuar. Como cada caso é um caso, em alguns casos, dois anos já seriam suficiente para ter um resultado que possa ser publicado num jornal científico de reputação. Isso daria ao cientista a possiblidade de bolsa por mais 5 anos, por exemplo, para ele continuar sua pesquisa. Em outros casos, 5 anos de trabalho não é suficiente, o que pode ser por causa da própria complexidade da pesquisa, ou outros motivos como atraso na importação de material etc. Nesse caso, acho que o estudante deveria ter pelo menos mais 3 anos de tolerância para poder concluir sua pesquisa, caso os relatórios anuais sejam aprovados, e o estudante comprove que não é por sua culpa que a pesquisa está demorando mais que o previsto.

Senti falta no texto uma discussão com relação ao fato de que para os futuros cientistas que ainda não tem um emprego definitivo, a ausência de estabilidade financeira é também um fator que contribui para o estado de humor dessa classe tão específica e especial de seres humanos.
(1) Médico, doutor em Psicobiologia e Divulgador Científico
Sugestão de Leitura
 
Gewin, V. (2012) Under a cloud: Depression is rife among graduate students and postdocs. Universities are working to get them the help they need. Nature 490, 299-301.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Demerval Saviani na anped

Leide Antonino, Demerval Saviani e Marta Shuare (35ª ANPED)
 
 Nascido em 25 de dezembro de 1943 em Santo Antonio de Posse, comarca de Mogi Mirim, no interior do Estado de São Paulo. Estudou nas instituições Grupo Escolar de Vila Invernada – periferia de São Paulo, Liceu Salesiano São Gonçalo – onde cursou o ginásio-, Seminário do Coração Eucarístico de Campo Grande.


Em Aparecida do Norte deu início à sua formação superior entre os anos de 1962 e 1963, no curso de filosofia da entidade, e deu continuidade aos seus estudos na PUC-SP, inclusive graduando-se em educação.


Atualmente é professor da mesma universidade na qual se formou, além de desenvolver, desde sua formação até os dias atuais, diversos projetos e pesquisa na área educacional, especialmente defendendo a análise crítica dos conteúdos agregada ao ensino das matérias comuns da escola.


Dermeval Saviani é grande educador que vivenciou um período de mudanças no nosso país, a exemplo da transição na educação durante a consolidação do período democrático que vivemos na atualidade, acompanhando, além das transformações sociais, as transformações na história da educação brasileira, acentuando os pontos positivos e negativos que as modificações no processo educacional refletiram no dia-a-dia, e teve uma visão progressista sobre a educação. Ele foi o fomentador da teoria histórico-crítica que também é conhecida como crítico-social dos conteúdos e tem como objetivo principal relação e transmissão de conhecimentos significativos que contribuam para a inclusão social do educando.


Através da análise de algumas obras do autor, é possível perceber que embora este se mostre otimista – apresentando soluções para melhorar o sistema educacional no país, a partir de uma análise histórica dos fatos -, Saviani apresenta sua obra de maneira realista, destacando os erros de um sistema de educação que desde os primeiros passos letivos foi corrompido e repleto de falhas, realizando um paralelo entre a política e a educação.
 
 
Em suas obras, Dermeval Saviani apresenta a escola como o local que deve servir aos interesses populares garantindo a todos um bom ensino e saberes básicos que se reflitam na vida dos alunos preparando-os para a vida adulta.   Em sua obra Escola e Democracia (1987), o autor trata das teorias da educação e seus problemas, explanando que a marginalização da criança pela escola se dá porque ela não tem acesso a esta, enquanto que a marginalidade é a condição da criança excluída.  Saviani avalia esses processos, explicando que ambos são prejudiciais ao desenvolvimento da sociedade, trazendo inúmeros problemas, muitas vezes de difícil solução, e conclui que a harmonia e a integração entre os envolvidos na educação – esferas política, social e administração da escola podem evitar a marginalidade, intensificando os esforços educativos em prol da melhoria de vida no âmbito individual e coletivo.
     Através da interação do professor e da participação ativa do aluno a escola deve possibilitar a aquisição de conteúdos – trabalhar a realidade do aluno em sala de aula, para que ele tenha discernimento e poder de analisar sua realidade de uma maneira crítica -,  e a socialização do educando para que tenha uma participação organizada na democratização da sociedade, mas Saviani alerta para a responsabilidade do poder público, representante da política na localidade, que é a responsável pela criação e avaliação de projetos no âmbito das escolas do estado e município, uma vez que este é o responsável pelas políticas públicas para melhoria do ensino, visando a integração entre o aluno e a escola.   A escola é valorizada como instrumento de apropriação do saber e pode contribuir para eliminar a seletividade e exclusão social, e é este fator que deve ser levado em consideração, a fim de erradicar as gritantes disparidades de níveis escolares, evasão escolar e marginalização.

    De fato, a escola é o local que prepara a criança, futuro cidadão, para a vida, e deve transmitir valores éticos e morais aos estudantes, e para que cumpra com seu papel deve acolher os alunos com empenho para, verdadeiramente transformar suas vidas.

O ENSINO – CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS TEORIAS NÃO CRÍTICAS DA EDUCAÇÃO E TEORIAS CRÍTICO-REPRODUTIVISTAS E A FUNÇÃO DO ENSINO

Ainda na obra Escola e Democracia, as teorias não críticas da educação aparecem para fomentar o pensamento do autor acerca da educação.

Em sua obra Escola e Democracia, Saviani busca contextualizar as correntes pedagógicas, iniciando pela pedagogia tradicional, que tem como objetivo organizar a escola e garantir a educação, que é um direito de todos e dever do estado, transformando os estudantes em cidadãos, que devem assimilar o acervo cultural transmitido pelo professor.

    A pedagogia tradicional trata a educação como a correção da marginalidade, e tem como função equalizar a sociedade; outra teoria abordada é a teoria tecnicista, que consta de propostas pedagógicas com enfoque sistêmico, buscando profissionalizar o aluno.

    Já as teorias crítico-reprodutivistas não têm proposta pedagógica, e percebem a escola, a educação e os personagens envolvidos no contexto como reprodutores das desigualdades sociais e destaca o papel da escola enquanto aparelho ideológico do estado, dividindo a burguesia e o proletariado.

    É possível perceber que em sua pesquisa, Saviani busca fomentar suas afirmações a partir de diversas fontes, consolidando assim seu pensamento e buscando transmiti-lo aos educadores que tem acesso à sua obra da maneira mais clara possível.  A escola não resolve todos os problemas dos alunos, em contrapartida, pode compensá-los mostrando que eles são capazes de desenvolver seu intelecto e contribuir para a melhora da sua própria vida.

  O ensino na concepção de Saviani significa produzir o saber, fazer com que aqueles que fazem parte do processo consigam absorver os conteúdos e transformar o meio onde vivem em um local com igualdade de oportunidades.

A APRENDIZAGEM
                                                           Fonte:google.com

Aprender é desenvolver a capacidade de processar informações e organizar dados resultantes de experiências ao passo que se recebe estímulos do ambiente. O grau de aprendizagem depende tanto da prontidão e disposição do aluno quanto do professor e do contexto da sala de aula. Como passo inicial o professor precisa verificar aquilo que o aluno já sabe por procurar escutar e observar. O aluno por sua vez procura compreender o que o professor tenta explicar. Quando ocorre a transferência de aprendizagem significa que o aluno conseguiu sintetizar as informações e passou a ter uma visão mais clara superando assim sua visão confusa e parcial.

    Dermerval Saviani acredita que a escola deve lutar contra a seletividade, a discriminação dos alunos, mas que o aluno também deve fazer sua parte, pois se somente se considerar uma peça sem qualquer importância no sistema conseguirá promover a mudança necessária para o bem de toda a sociedade e do próprio sistema.

    Saviani alerta que, muitas vezes, o fracasso escolar é reflexo de fatores externos, tais como saúde, nutrição, fatores psicológicos e cognitivos, bem como de ordem familiar, e esses elementos contribuem negativamente para a absorção dos conteúdos, mas há de se fazer chegar aos pupilos a mensagem da importância da educação para a sua vida, fazendo-os encará-la como agente transformador, em um âmbito maior, na comunidade onde vive. 

    Ao analisarmos a história da educação, percebemos que um dos fatores que contribuem para os baixos índices de aprendizagem é a evasão escolar, corrente desde os primórdios da educação no país, tornando mais difícil a construção da base educacional da nação, uma vez que grande parte da população não conta com um modelo de educação efetivo que sirva de modelo para futuras adaptações.

     É relevante ressaltar que o saber educacional, aquele que envolve a disciplina e o intelecto do aluno é importante, para que ele tenha base em uma sociedade que o pontua, seja nas provas da escola, do vestibular ou no alcance de metas em um futuro emprego, mas é preciso também durante o processo de aprendizagem, preparar esse aluno para saber se posicionar e analisar com maior profundidade e tenha uma capacidade de opinar, julgar, que deve ser trabalhada ainda na escola, preparando de fato, o cidadão para o futuro.

    Saviani conclui suas observações no livro Escola e Democracia (1987), que o ensino não é somente pesquisa, onde o professor tem a função de estudar determinado tema e transmitir aos seus alunos, mas sim um artifício que deve ser utilizado de maneira inteligente, propondo atividades que permitam a resolução de problemas através do questionamento deles, levantamento de hipóteses pertinentes e experimentação, fazendo com que o aluno assuma a responsabilidade de sua própria capacidade de pensar e de se posicionar perante os desafios da vida.

    Enquanto os interesses educacionais não beneficiarem o povo, que verdadeiramente necessita deles para melhorar sua situação perante a sociedade, a educação brasileira não avançará, em termos de melhora qualitativa, pois as políticas públicas para a educação nacional não visam outro alvo senão interesses políticos, que buscam evitar qualquer reformulação que possam fazer o povo prosperar, e prejudicar o poder.

domingo, 4 de novembro de 2012

SONATA DE OUTONO - RESENHA DE THIAGO M. CORREIA

Sonata de Outono (Ingmar Bergman, 1978)


“Mãe e filha. Que mistura terrível de sentimentos, confusão e destruição.”

O outono é a estação do ano caracterizada pela queda das folhas e renovação da vegetação; é quando as árvores se preparam para ganhar nova “cara”, novas folhas e frutos com a chegada da primavera. Mas enquanto não é chegada a estação das flores, as árvores permanecem por um bom tempo na direta situação de nudez aparente, onde podem ser vistas como são, sem enfeites, sem cores, sem máscaras. Foi esta a estação escolhida pelo cineasta sueco Ingmar Bergman para servir de pano de fundo para a história de duas mulheres que se preparam para deixar o que é aparentemente belo de lado e mergulharem na crueza do feio _ e que, na maior parte das vezes, é também mais verdadeiro. Sonata de Outono, a história do reencontro de mãe e filha após um hiato de 7 anos que acaba convergindo para uma dura batalha de verdades e ressentimentos, é mais um filme/estudo de Bergman sobre as relações do ser humano e a maneira como lidamos com nós mesmos. 
Para retratar a atmosfera outonal, Bergman mais uma vez contou com o primoroso trabalho de Sven Nykvist, criando na fotografia um aspecto impressionista, ainda ressaltado pelos figurinos e a direção de arte, baseados no vermelho, amarelo e verde, cores características da estação.
Bergman assina aqui também os planos mais recorrentes de sua carreira pois Sonata de Outono, apesar do tom teatral e de se passar em basicamente um único ambiente, é cinema em sua forma mais pura, com os típicos closes fechados nos rostos das atrizes e as tomadas de perfil que desvendam um tanto mais do que aquele personagem é. Mas são os assuntos abordados que fazem do filme uma espécie de resumo da obra de Bergman, já que é possível encontrar aqui toda a gama de temas que sempre perturbaram e pontuaram a carreira do diretor e que fizeram de seus filmes uma eterna busca pela compreensão de si mesmo. Da infância traumática, matriz de todos os problemas da vida adulta, à citação da existência e importância de Deus, Bergman pontua o drama de mãe e filha como todos seus dilemas pessoais e que, por sua vez, acabam tornando a história ainda mais densa e verdadeira. É quando percebemos que estamos diante de uma narrativa baseada no sentimento do ser humano que clama por amor mas que acaba gerando _em si e nos outros_ uma dor quase irremediável, capaz de acompanhar por toda uma vida, perpetuada pelo medo, a culpa e a busca pelo perdão redentor.
Porque Sonata de Outono é sobre o amor. 
Aquele amor que todos dizemos ter e que, orgulhosos, usamos em palavras fáceis e discursos calorosos, num auto-engano recorrente e gradativo. O amor que Charlotte (Ingrid Bergman) diz ter por sua filha Eva (Liv Ullmann), mas que soa tão superficial como em todas as vezes em que ela necessita ser reafirmada diante de quem está ao seu redor. Quando sua filha diz estar feliz dando aulas na paróquia local, Charlotte cita o fato de ter feito uma turnê de sucesso em escolas americanas, tocando para milhares de alunos, ressaltando o clima de competição que estabelece com Eva. É essa necessidade que faz dela um personagem forte e fraco ao mesmo tempo, sempre buscando uma fuga mais simples. Mostrar o que sente seria difícil demais, portanto Charlotte acaba optando pela superficialidade de uma provável alegria, por fingir diante dos outros o que estaria passando dentro dela. Como quando reencontra sua filha vítima de uma doença degenerativa, Helena, e se mostra capaz de fazer promessas que claramente não poderá cumprir. E mesmo estando só em seu quarto, refletindo sobre o acontecimento, Charlotte se pega num paradoxal discurso de amor e raiva, ainda mais por Eva tê-la feito passar por tal constrangimento. Ela se vê incapaz de admitir um sentimento isento de raiva ou cobrança por sua filha e acaba atribuindo a Eva sua maneria errônea de agir. Sendo assim, para ela é justificável seu sentimento dúbio e acaba seguindo se enganando e tentando enganar os outros. Sorrisos são dados, olhares são lançados e palavras são caladas. Foi dessa maneira que Charlotte conduziu sua vida e “amou” as pessoas com quem convivia: Leonardo, seu amigo recém-falecido, foi digno de seus cuidados nos momentos finais mas não obteve uma lágrima sequer ao ser relembrado por ela; seu marido, complacente e compreensivo, recebeu palavras elogiosas em cada citação, mesmo que durante a vida em comum só tenha sido presenteado com ausência e traição; Helena foi abandonada quando pequena mas ganhou um relógio de pulso da mãe quando do reencontro _certamente para contar todas as horas que lhe prendem a uma vida morta; e Eva, que sempre amou e admirou incondicionalmente a mãe quando criança mesmo recebendo em troca a mais completa indiferença, foi agraciada com uma infância impossível e nela a não eminência do desenvolvimento. Foi em Eva que Charlotte mais despejou seu falso amor e dele fez nascer um ódio grandioso e assustador.

Porque Sonata de Outono é sobre o ódio. 
O ódio que Charlotte enxerga nas palavras de Eva quando esta finalmente se vê livre para dizer tudo que manteve guardado durante toda a vida. O ódio que acusa mas que, como Eva cita em determinado momento, não pode ser diminuído diante do ódio da própria Charlotte. Aquele que a fez tomar tantas medidas com relação à filha e machucá-la quase que de maneira irreparável. A constatação de Eva de que seria na sua infelicidade que a mãe encontrava seu triunfo não deixa de ser verdadeira _ e abominável_ levando-se em conta toda a necessidade de Charlotte de se sobressair diante da filha. No momento em que Eva se dispõe a tocar um prelúdio de Chopin, admitindo de antemão uma certa deficiência de técnica, é impossível para Charlotte não viver um misto de sensações: ao observar a filha tocando, ela não esconde no olhar a decepção diante da não-perfeição; mas ao olhar diretamente para o rosto de Eva, Charlotte acaba demonstrando certa compaixão, ainda que isso não a esquive de citar todos os erros cometidos por Eva em sua interpretação, mesmo que esteja ciente de ser a responsável por causar uma imensa dor na filha.

Porque Sonata de Outono é sobre a dor. 
É sobre um prelúdio de Chopin, interpretado de forma fria e racional por Charlotte, capaz de abdicar das sensações diante da busca pela perfeição. Ela ensina para Eva: “Há dor mas sem parecer. Depois um breve alívio. Mas ele some de repente, e a dor continua a mesma.” E ao começar a dedilhar no piano tem sobre intensa observação o olhar de Eva, atenta à técnica que a mãe esbanja e constatando assim sua aparente derrota em mais uma batalha emocional. Mas quando o olhar de Eva é direcionado ao rosto da mãe (exatamente como aconteceu na cena anterior, só que em posições opostas), o que percebemos é toda a amargura reprimida por ela e que acabou gerando uma espécie de medo da figura da mãe.

Porque Sonata de Outono é sobre o medo. 
O medo que Eva tinha da mãe quando criança e que a fazia não dizer nada, mesmo quando desejava intensamente. E vindo desse medo, a incapacidade de comunicação, a dificuldade de expressão e a aceitação do que lhe era dado. Por conta disso, Eva acabou se tornando uma mulher incapaz de questionar muito as coisas que lhe aconteciam, sendo muito mais espectadora da própria vida do que protagonista da mesma. E Bergman acaba dando a real dimensão dessa situação nos flashbacks que são inseridos ao longo do embate de Eva e Charlotte, quando somos transportados para a infância de Eva (volto a dizer, a origem de todos os problemas emocionais do ser humano, como em todo filme de Bergman) mas não participamos dos acontecimentos ativamente; o que é dito não pode ser ouvido e acabamos mantendo, através da câmera sempre parada e em plano aberto, uma distância considerável do que está sendo retratado. Como se aquilo realmente só pudesse ser visto e não reparado. E assim, numa bola de neve de impossibilidades, os personagens vão se tornando cada vez mais incapazes de se comunicarem e sentirem. O marido de Eva não sabe como dizer para a mulher que a ama, Charlotte diz que sempre necessitou do carinho da filha mas que encarava o amor desta como exigências, e Helena assume o papel alegórico da mais completa impossibilidade de comunicação, ficando isolada à dependência da irmã para estabelecer qualquer contato com a mãe. E sendo a doença de Helena, mais que uma metáfora da destruição da relação familiar, a culpa incutida no futuro de Charlotte.

Porque Sonata de Outono é sobre a culpa. 
A culpa do ser humano em não perceber o que está ao seu redor, de deixar passar o que não tem mais retorno e que acaba abrindo caminho para uma único desfecho aparente: a solidão. A negligênica de Charlotte com relação à família em detrimento da carreira, a levou a uma vida de sucesso e riquezas. Mas nem ela é capaz de negar que sente falta de um lar quando está longe, ainda que não saiba o que poderia buscar lá. Talvez por Charlotte nunca ter tido um lar verdadeiro, seja ele físico ou emocional. E a dor perene nas costas que acompanha a pianista acaba sendo reflexo da própria culpa pelo abandono de si e dos outros. A perda do que lhe poderia ser caro desperta em Charlotte uma necessidade de redenção, a tentativa de algo que lhe isente da culpa eterna. E nesse âmbito, a perda dela poderia ser relativizada diante da perda de Eva: o próprio filho, morto num afogamento. Mas Eva se mantém ligada ao filho (o que não deixa de ser interessante nessa fase de Bergman, mesmo depois de ele ter negado a existência de Deus, em Luz de Inverno) e acredita que ele continua vivo em algum tipo de plano paralelo. Em determinado momento ela diz para a mãe que: “É medo e presunção acreditar em limites. Não existem limites, nem para os pensamentos, nem para os sentimentos.” Resta a Charlotte realmente acreditar na existência de uma mudança que a possibilite o perdão pelos erros cometidos.

Porque Sonata de Outono é sobre o perdão. 
Ou sobre a não possibilidade dele, já que certas coisas não tem mais volta e algumas mágoas são eternas. A vida de Eva ou de Helena não poderia mais ser mudada por conta de um arrependimento da mãe, ainda que este fosse verdadeiro. E no caso de Charlotte, a necessidade de ser perdoada seria o que lhe restava para se manter ainda próxima de uma certa humanidade, mas até que ponto ela realmente estaria disposta a mudar? Todas as revelações e verdades são culminadas na mais dura fala de todo o longa, quando Eva diz á mãe sobre o que aconteceu entre Helena e Leonardo e o estado daquela diante da partida deste, ocasionada por culpa de Charlotte e, obrigada a constatar a dura realidade, fulmina: “Não há desculpas. Só há uma verdade e uma mentira. Não pode haver perdão.”

No pragmatismo aparente se encerraria mais uma obra-prima de Ingmar Bergman, mas cabe lembrar que o filme é sobre o outono, e que a estação tem fim. Com a queda das folhas, as árvores acabam sendo reveladas em sua essência mais crua e feia. Mas ainda que as folhas caídas não possam mais retomar vida nas árvores e fiquem perdidas no chão, em algum momento a primavera virá e com ela o nascimento de novas folhas e novas possibilidades de cores. Porque Sonata de Outono é sobre a esperança.

Preste atenção: Em toda a intensidade da seqüência de execução do prelúdio de Chopin, uma das mais belas _e fortes_ cenas de toda a história do cinema. Amparado pelas brilhantes interpretações de Liv Ullmann e Ingrid Bergman, Ingmar Bergman permite que suas atrizes expressem com uma economia assustadora de gestos, faciais ou corporais, todo o turbilhão de sentimentos que se passa com aquelas mulheres. E fora que Chopin é Chopin…

Porque não perder: Primeiro e único filme de Ingrid Bergman com seu compatriota Ingmar Bergman; a melhor interpretação desta que foi uma das maiores estrelas da história do cinema; uma das maiores interpretações da maior atriz da história do cinema (na minha opinião), Liv Ullmann; o melhor (e olha que afirmar isso é muito complicado) filme do maior diretor da história do cinema…é muito “melhor da história” para perder, não concorda?
4/4
Thiago Macêdo Correia

SOFRIMENTO PSIQUICO E CONTEMPORANEIDADE: DE QUE PADECEMOS HOJE?

REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO E ESFERA PÚBLICA - LIVRO