domingo, 19 de fevereiro de 2012

IV CICLO INTERNACIONAL DE CULTURA E RESILIÊNCIA - SOBRE RESILIÊNCIA: QUESTÕES TEÓRICAS

SOBRE RESILIÊNCIA: QUESTÕES TEÓRICAS
Desenvolvida no campo da física, a noção de resiliência é utilizada para
pensar a resistência dos materiais ao choque e sua possibilidade de retorno,
após o impacto, ao estado inicial. Ocorre que, no campo do humano,
a turbulência produz novos efeitos subjetivos imprevisíveis; não poderíamos
pensar na possibilidade de se passar por um grande choque, um evento
traumático, e voltar ao estado anterior.
A pessoa que vive uma situação potencialmente traumática tem sua subjetividade
alterada: para sobreviver, ela precisa colocar em ação mecanismos para se adaptar
à dor, física ou psíquica, e suportá-la; para encaixar na vida dita normal as  marcas
de seu esforço de sobrevivência; para conviver com a impossibilidade de
compartilhar com os outros a intensidade de uma vivência quase  incomunicável.
É preciso, então, lidar com esse conceito como uma metáfora e reter dessa
construção da física a idéia de que a resistência que esses materiais
apresentam está diretamente ligada à sua flexibilidade. Esta é a razão
pela qual os primeiros estudos sobre a resiliência têm sido alvo da crítica
de boa parte dos pesquisadores contemporâneos, já que identificavam
esta possibilidade de superação a condições adversas, apresentadas por
 algumas crianças, como uma capacidade interna, compreendida como
 invulnerabilidade ao choque.
Pouco a pouco, as pesquisas foram considerando a influência do meio,
dos fatores sociais no fenômeno da resiliência. Uma conseqüência é sua
visão como um processo e não como uma característica do indivíduo.
A outra é a relativização das noções de risco e proteção. Constata-se
que o fato de se identificar a presença de fatores de risco não define
a ocorrência ou não do trauma; tampouco a existência de fatores de
proteção garante a ocorrência da resiliência.
A consideração da interação do sujeito com a ecologia de seu entorno
leva à análise do risco como uma situação, como tal, sempre mutável de
pessoa para pessoa e mesmo para uma mesma pessoa, em momentos
diferentes de sua vida.
Desloca também a identificação de fatores para a análise de mecanismos
de proteção em sua complexidade.
Outra importante conseqüência trazida pela abordagem ecológica da resiliência
consiste na crítica da identificação desse fenômeno com a adaptação positiva à
adversidade. A relevância dessa crítica deve-se à facilidade de utilização
ideológica do elogio da criatividade e da utilização de recursos pessoais
 para a o enfrentamento situações de adversidade que exigiriam não uma
resposta de adaptação, mas, ao contrário, deveriam contar com a recusa,
a resistência e a indignação do sujeito exposto à privação, como forma de
 suscitar a responsabilidade social aí implicada.
O mecanismo de favorecimento a uma atitude resiliente seria exatamente a
oferta de recursos que possibilitassem saída da imobilidade provocada pela
 dor e o conseqüente retorno a um estado de potência, de vitalidade e
 atividade do sujeito.
Outra expressão das análises dualistas entre pólos positivos e
pólos negativos que transitam nas pesquisas sobre resiliência é sua
freqüente articulação com os conceitos de estresse e coping. Nesse caso,
o estresse, definido como uma relação particular entre a pessoa e o ambiente
que é apreciado por ela como excedente aos seus recursos, o que coloca
em perigo seu bem-estar (Lazarus &Folkman, in Yunes e Szymansky, 2002),
seria o pólo negativo. A administração do estresse constitui o coping,
definido como um conjunto de esforços cognitivos e comportamentais
 utilizados com o objetivo de lidar com demandas específicas, internas ou
externas, que surgem em situação de estresse e são avaliadas como sobrecarregando
 ou excedendo os recursos pessoais (idem ibidem).
Dessa forma, o coping bem sucedido constituiria uma resposta positiva ao
estresse, capaz de aliviar os aspectos negativos das situações de estresse
ou risco. Identificado em alguns estudos como resiliência, ele se expressaria
por manifestações de competência apesar da exposição a eventos estressores
(Garmezy, Masten & Tellegen, in Yunes e Szymansky, 2002), isto é, em termos
 aquisição  de competência social.
Em geral, os critérios avaliativos baseados na noção de competência social
para configurar o coping bem sucedido consideram o sucesso como sinônimo
de estar em consonância  com as expectativas sociais. Esse sucesso em se
adequar às normas sociais, obter bom desempenho acadêmico e de
sociabilidade pode ser realizado simplesmente com o objetivo de agradar
 e ser aceito, configurando o que  Martineau (1999),,  denomina resiliência
performática. Uma das possibilidades de resposta adaptada é, portanto,
uma espécie de normopatia. Por outro lado, a busca de uma adaptação
ativa ao ambiente, a procura pelo acolhimento pode expressar-se em
comportamentos agressivos, mesmo delinqüentes, na busca de
encontros que possam ter ação recuperadora de um espaço
para atividade criativa.
Um dos objetivos dos estudos mais recentes sobre a resiliência
tem se concentrado portanto em definir sua especificidade diante
 de tantos temas similares. Uma peculiaridade fundametal refere-se
ao fato de que os mecanismos de resiliência estão sempre referidos
como resposta à ocorrência de um traumatismo.
Podemos compreender o trauma como a impossibilidade de
responder de forma eficaz a um impacto do ambiente, que
traz um excesso de informações e estímulos impossível de ser
 processado. É a possibilidade de processamento que o difere
do estresse. A intensidade de um evento traumático não
comporta administração cotidiana. Provoca no sujeito uma
 imobilidade de respostas, muitas vezes expressa não exatamente
 na inatividade, mas na repetição de comportamentos,  reações
ou padrões de relacionamentos. A definição de resiliência proposta aqui é sua configuração como uma das possíveis respostas ao trauma, mas com peculiaridade de trazer a possibilidade de retomada a algum desenvolvimento.
O desenvolvimento é entendido aqui como o rompimento da
cadeia de repetições imobilizadores instaurada pelo trauma,
o que permitiria colocar esse sofrimento na cena do circuito
social, possibilitando assim transformá-lo de uma violência sem
sentido em uma reação plena de significação e plasticidade,
ainda que afetada pela dor.
O que faz do trauma uma vivência insustentável não é a situação
potenciamente traumática, mas o que acontece depois dela, 
a maneira com que se pode lidar com seu impacto, com suas
lembranças, os caminhos através dos quais se pode contar
com a sustentação e ajuda de outras pessoas.
A noção de invulnerabilidade não é, portanto,  boa estratégia
para uma metodologia de análise da resiliência, pois o que pode
antagonizar com as forças traumáticas são novas marcações que
produzem/instauram espaço para a vitalidade.
Nesse sentido, o mecanismo necessário para escapar ao trauma
é exatamente o contrário: é a possibilidade de se deixar marcar,
de compor um sentimento de confiança de que é possível lidar
com a tensão, inscrevê-la num circuito de trocas com o outro,
de forma que tanto a dor quanto o desejo possam ser sustentados.
O debate sobre a resiliência apresenta-se então como uma das
 formas de investigação a respeito da articulação entre redes
 sociais e práticas de inclusão.
A situação cotidiana de privação a que vemos submetida
grande parte da população em nosso país, e em tantas outras
 áreas onde a precariedade é norma, não nos permite o conforto
de esperar que a solução esteja numa capacidade pessoal de
resistência a uma realidade com tal potência traumática.
Por isso tenho considerado com muito cuidado a crítica apontada
aos primeiros estudos sobre a resiliência, que identificavam esta
possibilidade de superação como uma capacidade psicológica
 interna, individual, compreendida como invulnerabilidade ou
como uma habilidade de adaptação positiva ao choque.
O que pode antagonizar com as forças traumáticas é exatamente
o contrário disso: é a possibilidade, de alguma forma instaurada
na experiência do sujeito, de se deixar afetar por novas vivências,
experiências capazes de produzir espaços de restauração de sua
 força vital. Isto só é possível com a participação de um outro
interessado em investir nessa contra-corrente ao movimento
dos efeitos traumáticos, interessado em provocar uma reação
ativa e não uma adaptação passiva.
O mecanismo de favorecimento a uma atitude resiliente teria
então que se dirigir ao estabelecimento de recursos, produzidos
 pelo ambiente, de acolhimento, isto é, de negociação com as
 forças produzidas pela adversidade – revolta, isolamento,
resignação subserviente, vergonha, ódio e medo - para a saída 
da  imobilidade provocada pela dor e pela desesperança, e o
conseqüente retorno a um estado de potência, de vitalidade e
atividade do sujeito.
Estamos falando de um mecanismo não meramente psicológico,
mas de políticas do cotidiano para construir o espaço de retomada
a algum desenvolvimento, a retomada do movimento de
investimento na vida, para além da sobrevivência; aquilo que
possibilita transformar uma violência sem sentido e sem resposta
em uma reação plena de significação e plasticidade,
ainda que afetada pela dor.
Segundo Boris Cyrulnik (2007), o processo de resiliência estaria
 então ligado a três aspectos fundamentais: a aquisição de
recursos internos que se desenvolvem desde os primeiros
meses de vida; o tipo de agressão, ferida, falta e, sobretudo,
a significação dessa ferida no contexto da pessoa; e,
finalmente, os encontros, as possibilidades de  apoio
e ressignificação da experiência traumática. 
Stefan Vanistendael aponta ainda: redes de ajuda social,
a possibilidade de encontrar um sentido para a vida ,
a construção do amor-próprio e o senso de humor.
Acrescentaríamos: a possibilidade de encontrar um meio
de expressão para a intensidade emocional da experiência
traumática ou de adversidade, que pode ser dar através
a arte, da cultura ou do esporte; a importância de cada
encontro com as outras pessoas, ou com a literatura,
com a possibilidade enfim de vislumbrar outras formas
de lidar com a adversidade encontrada na experiência de
outra pessoas, e que pode revelar capacidades próprias
antes desconhecidas; cada encontro –com amigos, educadores,
profissionais de saúde ou mesmo familiares - pode significar
uma possibilidade de reparação das marcas de situações de
extrema adversidade ou trauma.
Pensar assim traz uma chance a mais mesmo para aquelas
crianças que não desenvolveram recursos internos desde a
tenra infância e que são submetidas ao traumatismo cotidiano
e banalizado da realidade adversa de um país como o Brasil.
Tal abordagem sobre a resiliência afasta-nos de uma concepção
 assistencialista; pelo contrário, trabalha no sentido de
procurar os movimentos, os territórios, as relações,
os pequenos eventos do cotidiano que, articulados
(nem sempre didaticamente articulados), fazem a
composição um sentimento de confiança de que é
possível lidar com a tensão, inscrevê-la num circuito
de trocas com o outro, de forma que tanto a dor quanto
 o desejo de transformação possam ser sustentados.
A idéia não é a de produzir sujeitos resilientes, possuidores
 de uma identidade de resiliência, mas marcas de resiliência,
matrizes de onde se poderia multiplicar a potência de agir – e,
às vezes de produzir alegria, adaptação ativa, encontro –
ao longo da vida.
Temos ouvido objeções quanto à utilidade do conceito de
resiliência. Entretanto, em meu trabalho no campo da educação,
pesquisar este tema tem sido bastante útil para discutir estratégias
cotidianas de superação, de enfrentamento, de desidealização da
 harmonia – que freqüentemente se traduz em apatia -, de
valorização da tensão dos encontros como produtora de novos
recursos, da importância de insistir no investimento na vivacidade do cotidiano.
Num país como o Brasil, em que as políticas públicas não
asseguram formas de atendimento ao traumatismo cotidiano,
 insidioso, banalizado pela repetição a que são submetidas vastas
populações de crianças e adolescentes em situação de rua, ou de
 total precariedade de condições de permanência na escola pública,
ou de maciço abandono no atendimento sanitário e de saúde pública,
é de fundamental importância colocar em discussão e em
articulação as iniciativas, tanto no campo da pesquisa,
quanto no campo das ações sociais, de enfrentamento
dessa alarmante realidade social.
É igualmente importante abrir espaços um diálogo
crítico do impacto social de cada uma das opções metodológicas
e estratégias de ação desses grupos.

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