segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Algumas Contribuições da Psicologia Cognitiva

Marta Kohl de Oliveira  (Profa. da Faculdade de Educação- USP.)

 A criança que chega à escola é um indivíduo que sabe coisas e que opera intelectualmente de
acordo com os mecanismos de funcionamento mental da espécie humana. É um indivíduo
que é membro de um grupo sócio-cultural determinado, que lhe fornece o material cultural
sobre o qual vai operar na sua vida cotidiana - desde os objetos concretos até os conceitos,
idéias, valores, concepções sobre o mundo e sobre a própria experiência - bem como modos
privilegiados de operação sobre esse material. E é um indivíduo absolutamente único que, a
partir do substrato biológico representado pelo seu organismo de ser humano e da definição
cultural de seu contexto cotidiano, vive uma história pessoal que resulta numa configuração
particular de experiências.

A escola onde essa criança chega é - na sociedade letrada e particularmente no contexto
urbano, industrializado e burocratizado - um elemento de fundamental importância no seu
ambiente sócio-cultural. Tem cano objetivo transmitir um corpo de conhecimentos socialmente
definidos como relevantes e modos de operar intelectualmente considerados adequados dentro
desse contexto social. Como fazer para trazer cada indivíduo do ponto de partida em que se
encontra ao entrar na escola para o ponto de chegada estabelecido pelos objetivos dessa escola é o
desafio a ser enfrentado no desenvolvimento do trabalho escolar. Com a democratização do
sistema educacional, e o conseqüente ingresso na escola de crianças das camadas populares,
esse desafio tornou-se maior, na medida em que a clientela da escola é agora mais
heterogênea e mais desconhecida dos educadores e estudiosos da Educação.
Para o enfrentamento desse desafio, alguns subsídios podem ser buscados na psicologia
cognitiva, no sentido de aprofundar as reflexões a respeito da criança como um ser ativo, que
elabora e verifica hipóteses e constrói conhecimento. Dois temas serão abordados neste texto:
a formação de conceitos e a construção de universos de significado, e as relações entre
desenvolvimento intelectual e aprendizagem.

 "O fator isolado mais importante que influencia a aprendizagem é aquilo que o aprendiz já
conhece".    (Ausubel et alii, 1980)

Os processos mentais superiores que caracterizam o pensamento tipicamente humano são
processos mediados por sistemas simbólicos. Isto é, operamos mentalmente com
representações dos objetos, eventos e situações do mundo real, sendo capazes de manipular
as representações na ausência das coisas representadas. Essa capacidade de representação
simbólica liberta o homem da necessidade de interação concreta com os objetos de seu
pensamento, permitindo que ele pense sobre coisas passadas ou futuras, inexistentes ou
ausentes do espaço onde ele se encontra, sobre planos, projetos e intenções.

Ao mesmo tempo, as representações mentais constituem uma espécie de "filtro" através do
qual percebemos o mundo real, justamente por mediarem a relação direta entre o sujeito e o
objeto de conhecimento. Os conceitos, representações da realidade rotuladas por signos
específicos (as palavras), ao ordenarem as ocorrências do mundo real em categorias, de
maneira a simplificar sua extrema complexidade, de certa forma moldam a percepção que
temos do mundo. Os conceitos são determinados pelas características objetivas do universo
em que se move o ser humano, bem como pelas formas de organização impostas ao real pelo
próprio homem. Assim, por exemplo, se por um lado a forma triangular existe no mundo
físico, por outro, a palavra "triângulo" agrupa todas as ocorrências dessa forma geométrica
sob uma mesma categoria conceituai. O indivíduo que se desenvolve numa cultura que
dispõe da palavra "triângulo" interage simultaneamente core as formas triangulares que
encontra no mundo e com a existência e o uso dessa palavra. O conceito de triângulo que
esse indivíduo possui, portanto, procede ao mesmo tempo de um dado objetivo e da
disponibilidade da palavra, com um determinado significado, na sua língua.

A partir de sua experiência com o mundo objetivo e do contato com as formas culturalmente
determinadas de ordenação e designação das categorias da experiência, o indivíduo vai então
construindo sua estrutura conceituai, seu universo de significados. Esse é um processo que
ocorre ao longo do desenvolvimento intelectual da criança e do adolescente e persiste na vida
adulta - o indivíduo está sempre adquirindo novos conceitos, incorporando novas nuanças de
significado a eles e reordenando as relações entre os conceitos disponíveis. A cada momento
da vida do indivíduo ele disporá, então, de uma certa estrutura conceituai, a qual é uma
espécie de rede de conceitos interligados por relações de semelhança, contigüidade,
subordinação. Essa rede de conceitos representa, ao mesmo tempo, o conhecimento que ele
acumulou sobre as coisas e o filtro através do qual ele é capaz de interpretar os fatos, eventos
e situações com que se depara no mundo objetivo.

Nos primeiros anos da infância o processo de constituição da estrutura conceitua) está
estreitamente associado â aquisição da linguagem. Uma criança pequena aprende, por
exemplo, que o animal que tem em casa é denominado "cachorro". Quando vir pela
primeira vez um gato ou um cavalo, por serem animais de pêlo, com rabo e com quatro
patas, é possível que os nomeie também de "cachorro". É na interação verbal com os
adultos e as crianças mais velhas e no acúmulo de observações sobre o mundo objetivo,
que essa criança pequena vai ter informações para descobrir que a generalização que
havia feito da palavra "cachorro" é inadequada. Vai proceder, então, a ajustes gradativos
na sua estrutura conceitua) de forma a aproximá-la da organização conceitua)
predominante no seu meio cultural e expressa na sua língua materna.

Para as crianças mais velhas, que já têm o domínio da linguagem falada, a experiência
escolar é muito importante no processo de aquisição de conceitos. Mais do que a
experiência direta e os processos de generalização e discriminação realizados pela
criança pequena sobre os eventos observados, são centrais agora as informações obtidas
por meio de outras pessoas ou fontes, sem referências à experiência pessoal concreta.
Aquela criança que havia chegado a um conceito de cachorro, suficientemente estreito
para incluir apenas cachorros e suficientemente amplo para incluir desde pequeneses até
dobermans, pode vir a ampliar seu conceito de cachorro a partir de uma informação que
adquire na escola (ou num livro, ou através de outras pessoas) e incluir, por exemplo,
uma raça de cachorro chinês jamais vista por ela. Provavelmente também virá a saber
outros atributos dos membros da classe dos cachorros - são mamíferos, são vertebrados,
têm um coração, são aparentados com o lobo etc. Ao mesmo tempo em que o conceito é
tornado mais preciso, mais relações com outros conceitos são explicitadas. Do mesmo
modo, novos conceitos são adquiridos e a estrutura conceitua) do indivíduo torna-se
sempre mais complexa e mais completa.

Além da experiência pessoal direta e da utilização de fontes diversas de informação para
a ampliação e o refinamento da estrutura conceituai, conforme o indivíduo vai se
tornando mais maduro, mais importante se torna seu processo de reflexão sobre os
conceitos e maiores serão as possibilidades de uma ação deliberada sobre o próprio
universo de conhecimentos. Os adolescentes e adultos são capazes de buscar,
intencionalmente, informações para preencher lacunas no seu conhecimento sobre um
certo domínio, por terem condições de auto-análise de confrontação do próprio universo
de significados com outros - de outras pessoas, de uma disciplina escolar, da ciência
consolidada.

Esse processo permanente de construção da estrutura conceitua) do indivíduo baseia-se,
conforme esboçado inicialmente, nos mecanismos de funcionamento intelectual do ser
humano, na mediação simbólica fornecida pelo contexto cultural no qual o indivíduo vive
e na configuração específica de suas experiências pessoais. Esse processo é, na verdade,
o processo de aprendizagem pelo qual todas as pessoas passam, ao longo de toda a vida,
dentro e fora da escola. É neste ponto que se estabelece a ligação da formação de
conceitos e da construção de universos de significado com o processo de aprendizagem
que ocorre na escola. O professor, cumprindo com os objetivos escolares, estará
empenhado na transmissão de um corpo de conhecimentos para alunos concretos que
têm, cada um, um universo conceitua) próprio. Esse universo, que constitui para cada
indivíduo seu conteúdo intelectual acumulado e a mediação simbólica da sua
experiência, é a base sobre a qual se assentarão os diversos episódios de aprendizagem.
Adquirir conhecimentos sobre um certo assunto é operar transformações na estrutura de
conceitos, já adquiridos, relacionados a esse assunto. Sendo assim, é fundamental a
relação do novo conhecimento com a estrutura conceitua) de quem vai aprender.

Para voltar aos exemplos mencionados anteriormente, podemos imaginar que ensinar o
que é um pastor alemão a uma criança cujo pai tem um canil em casa seja
completamente diferente de se ensinar esse mesmo conceito a uma criança que nunca
conviveu com cachorros. Do mesmo modo, o trabalho com figuras geométricas partirá de pontos diferentes se a criança que vai aprender dispuser da noção de triângulo ou não. A afirmação de que a criança
constrói conhecimento ganha substância se soubermos que criança é essa, que tipo de
conhecimentos ela possui, qual a relação entre o modo como ela tem estruturados os
conceitos referentes a um certo assunto e o modo como esse assunto está articulado
pelos especialistas que nos fornecem subsídios para o ensino. Assim, ficarão explicitados
caminhos possíveis de construção de conhecimento, bem como o que a situação escolar
poderia fornecer como auxílio a esse processo individual.

 "O único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento".   (Vygotsky, 1988)

Utilizamos, até aqui, uma concepção de aprendizagem como um processo permanente de
construção de estruturas conceituais e que envolve os mecanismos de funcionamento
intelectual, o contexto sócio-cultural em que o indivíduo vive a história pessoal de cada
um. Por sua própria natureza de processo que ocorre ao longo da vida individual e que
envolve transformações intelectuais, a aprendizagem assim concebida remete à idéia de
desenvolvimento intelectual e ã necessidade de se conhecer esse desenvolvimento para
melhor compreender os mecanismos de aprendizagem.
O ser humano, que chega ã idade adulta funcionando intelectualmente de forma
complexa e com um vasto universo de conhecimentos acumulados, nasce como um
organismo que opera basicamente por mecanismos de reflexos. A gênese do intelecto
adulto, desde os primeiros dias de vida e passando pelas diversas fases da infância e da
adolescência, tem sido amplamente estudada em psicologia. A concepção predominante
na psicologia do desenvolvimento é a de que existe um processo de maturação do
organismo que segue certas etapas em seqüência e leva ao domínio de determinadas
formas de pensamento típicas da idade adulta. Mesmo considerada a interação do
organismo com o meio físico e social em que vive, postula-se o desenvolvimento
intelectual como um processo que tem certa autonomia e que define, a cada fase, os
limites e as possibilidades de desempenho cognitivo do indivíduo. Esse processo
definiria, também, as possibilidades de aprendizagem que o indivíduo tem a cada
momento.
Ocorre aqui um problema teórico importante: como postular a autonomia do processo de
desenvolvimento e sua influência nas possibilidades de aprendizagem, se articularmos a
aprendizagem com a mediação sócio-cultural e com a configuração única das
experiências vivenciadas pelo indivíduo? Isto é, se considerarmos que o indivíduo não
funciona intelectualmente num "vácuo", seu desenvolvimento não pode ser tomado como
independente dos complexos processos de aprendizagem por ele vivenciados. Como se
daria, então, a relação entre desenvolvimento e aprendizagem?

Podemos encontrar nos textos de VYGOTSKY uma solução extremamente interessante para esse
problema. Incorporando a idéia de que existe um processo de maturação do organismo e tomando
o funcionamento intelectual como essencialmente sócio-histórico, VYGOTSKY (1984) coloca a
aprendizagem como "um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das
funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas". Isto é, existe, sim,
um percurso de desenvolvimento intelectual, mas é a aprendizagem que possibilita o despertar de
processos internos de desenvolvimento que, não fosse o contato do indivíduo com um certo
ambiente cultural, não ocorreriam. Desempenhos cognitivos que um indivíduo é capaz de ter,
numa certa fase de seu desenvolvimento, quando tutorado ou instruído por alguém, não
ocorreriam autonomamente. É como se o auxílio externo fosse um dos motores do desenvolvimento, provocando processos internos que ainda vão amadurecer em capacidade de desempenho independente. Essa concepção atrela o processo de desenvolvimento ã relação do indivíduo com o ambiente sócio-cultural em que vive e com sua situação de organismo que não se desenvolve plenamente sem o suporte de outros indivíduos de sua espécie.

A implicação dessa proposta de VYGOTSKY para o ensino escolar é imediata. Se a
aprendizagem impulsiona o desenvolvimento, por um lado a escola tem um papel essencial na
construção do intelecto adulto dos indivíduos que vivem em sociedades escolarizadas. Por
outro lado, o desempenho desse papel só se dá adequadamente na medida em que,
conhecendo a situação de desenvolvimento cognitivo dos alunos, a escola dirige o ensino não
para etapas intelectuais já alcançadas, mas sim para estágios de desenvolvimento ainda não
incorporados pelos alunos, funcionando realmente como um motor de novas conquistas
intelectuais. É nesse sentido que cabe a afirmação de que "o único bom ensino é o que se
adianta ao desenvolvimento". Se para compreender os mecanismos da aprendizagem escolar é
importante conhecer como se dá o desenvolvimento intelectual, é fundamental que se tenha
em mente que, complementarmente para a criança que freqüenta a escola, a aprendizagem
escolar é elemento central no seu desenvolvimento.

 BIBLIOGRAFIA

AUSUBEL, D.P. et alii. Psicologia educacional Rio de Janeiro, Interamericana, 1980.
VYGOTSKY, L.S. Pensamento e linguagem. Lisboa, Antídoto, 1979.
. A formação social da mente. São Paulo, Martins Fontes, 1984.
. Aprendizagem e desenvolvimento na idade escolar. In: Vygotsky et alii. Linguagem,
desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo, Ícone/EDUSP, 1988. p. 103 - 117.




























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