segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A Perspectiva de Jean Piaget

Lino de Macedo

 Considerar a aprendizagem da criança pré-escolar em uma perspectiva de Piaget implica, de imediato, ter em conta que este autor escreveu sobre o desenvolvimento da criança e não sobre sua aprendizagem. Qual a diferença entre desenvolvimento e aprendizagem? Para Piaget, a aprendizagem refere-se à aquisição de uma resposta particular, aprendida em função da experiência, seja ela obtida de forma sistemática ou não. O desenvolvimento seria uma aprendizagem no sentido lato e ele é o responsável pela formação dos  conhecimentos. Sendo assim, Piaget interessou-se muito mais em descrever e analisar o desenvolvimento da criança do que suas aprendizagens.

Segundo Piaget, a criança pré-escolar encontra-se em uma fase de transição fundamental entre a ação e a operação, ou seja, entre aquilo que separa a criança do adulto. Além disso, é uma fase de preparação para o período seguinte (operatório concreto).

Enquanto fase de transição, o que caracteriza o período pré-escolar? Trata-se de um período com características bem demarcadas no processo de desenvolvimento e que Piaget chamou de pré-operatório. Este período localiza-se entre o sensório-motor e o operatório concreto. Suponho ser útil aos professores saberem o que significa cada um destes três períodos, para poderem apreciar a direção do desenvolvimento psicológico na perspectiva de Piaget. Saber de onde a criança vem e para onde vai em termos de desenvolvimento é, em uma perspectiva genética, tão importante quanto saber onde ela está, ainda que um aspecto não anule o outro.

O período sensório-motor caracteriza-se pela construção de esquemas de ação que possibilitam à criança assimilar objetos e pessoas. Além disso, caracteriza-se pela construção prática das noções de objeto, espaço, causalidade e tempo, necessárias à acomodação (ajustamento) destes esquemas aos objetos e pessoas com os quais interage. Tem-se um processo de adaptação funcional pelo qual a criança regula suas
ações em função das demandas de interação, compensando progressivamente, sempre no plano das sensações e da motricidade, as perturbações produzidas pela insuficiência dos esquemas no processo de interação.
O período sensório-motor caracteriza-se por uma inteligência prática, que coordena no plano da ação os esquemas que a criança utiliza. É a fase caracterizada por um contato direto, isto é, sem representação, pensamento ou linguagem, da criança com objetos ou pessoas. Construindo (sempre em termos práticos) seus esquemas de ação e as categorias da realidade, graças à composição de uma estrutura de grupo de
deslocamentos, a criança vai pouco a pouco diferenciar e integrar os esquemas de ação entre si, ao mesmo tempo que se separa, enquanto sujeito, dos objetos, podendo, por isso mesmo, interagir de forma mais complexa com eles. Lembre-se, a este respeito, a noção de objeto permanente e suas conseqüências no processo de desenvolvimento.
O acabamento do período sensório-motor coincide com uma novidade extremamente importante para o desenvolvimento da criança, que é sua nova capacidade de substituir um objeto ou acontecimento por uma representação. A função simbólica, para Piaget, é o que possibilita esta substituição e ela significa que, agora, a criança é capaz de duplicar objetos ou acontecimentos por uma palavra, por um gesto, por uma
lembrança, ou seja, é capaz de evocá-los em sua ausência. Trata-se de uma novidade importante porque a interação direta, e por isso limitada, ainda que intensa, do período sensório-motor dá lugar à interação mediada por imagens, lembranças, imitações diferidas (isto é, na ausência do objeto ou acontecimento), jogos simbólicos, evocações verbais, desenhos, dramatizações. Esta é a novidade específica do período
pré-operatório: poder representar, ter que substituir objetos ou acontecimentos por seus equivalentes simbólicos, agir agora "como sé", ou seja, por simulação.
Não é que neste período a criança tenha abandonado o plano da ação em favor da representação. Os professores de pré-escola sabem muito bem que a criança entre dois e seis anos explora ativamente pela ação e que sua inteligência se manifesta cada vez mais e melhor neste plano. O que observamos é, de um lado, uma presença paralela das representações e, de outro, uma crescente melhoria delas mormente no campo de regulações perceptivas e intuitivas. Em outras palavras, a criança neste período sofistica a
atividade sensório-motora (corre, pula, afasta-se cada vez mais de seu ambiente familiar, pode ir e voltar de um lugar a outro com segurança etc.) e ao mesmo tempo constrói progressivamente a possibilidade e a necessidade de representar ou simular situações.

Como a criança estrutura suas ações no plano das representações no período pré-operatório? A resposta que Piaget deu a essa pergunta é que, neste período, a criança estrutura as representações de forma justaposta, sincrética e egocêntrica. Seu raciocínio é transdutivo e sua compreensão é de natureza intuitiva e semi-reversível. A justaposição caracteriza-se pelo fato de que a criança liga as palavras, as imagens, as
representações entre si de forma analógica, ou seja, baseada em um assim como (semelhanças e diferenças) e não em um se... então (implicação). As idéias ficam colocadas uma ao lado da outra, por contigüidade, mas consistindo em estados e não em transformações. Não existe, ainda no plano de representação, nenhuma ligação temporal, causal ou lógica. A criança sabe fazer mas não compreende o que faz, no sentido de poder, independentemente do corpo, reconstituir o que faz no puro plano da representação, ainda
não sabe organizar (estruturando as partes entre si e formando um todo) suas representações, como sabe tão bem organizar suas ações. As ligações são, então, de natureza, justapostas, isto é, analógicas. Veja-se, por exemplo, as coleções figurais no plano da classificação ou a separação em grande e pequeno no plano da seriação. O sincretismo é a tendência de a criança, do período pré-escolar, ligar tudo com tudo, de perceber globalmente, isto é, não saber discriminar detalhes, de fazer analogias entre coisas sem uma análise detalhada delas. Daí o caráter egocêntrico deste período, ou seja, é difícil, por falta de recursos cognitivos, para a criança deste período, sair de seu ponto de vista e considerar, diferenciando e integrando, os estados e as transformações das coisas.

Tomemos um exemplo clássico de Piaget. A criança, tendo admitido que dois copos iguais têm a mesma quantidade de água, deixa de pensar assim quando se transvasa o conteúdo de um deles para outro recipiente de dimensões diferentes (uma tigela, por exemplo). Confunde a forma dos recipientes (uma dimensão) com quantidade de líquido dentro deles (outra dimensão), tal que, mudando-se uma, altera-se igualmente a outra, sem que nada tenha sido acrescentado ou tirado. Ao dizer que tem o mesmo tanto na primeira comparação, antes do transvasamento, e ao dizer que tem mais na segunda, faz justaposição. Ao confundir as duas dimensões (forma e quantidade), faz sincretismo. Dois modos diferentes de ser egocêntrica. Seu pensamento vai, então, de um particular a outro, não sendo capaz de estabelecer ligações entre os estados. É como se fossem "slides" diferentes e não um "filme", em que a situação anterior e a seguinte estão ligadas entre si. Daí a criança deste período não ver contradição entre responder que os dois copos têm o mesmo tanto de água e na situação seguinte, sem que se tenha tirado ou posto mais água, dizer que tem mais no copo do que na tigela, ou ao contrário.
Para compreender que há o mesmo, isto é, que as transformações na forma (mudança de um copo para outro) são irrelevantes no que diz respeito à quantidade, que permaneceu a mesma, a criança há de ser capaz de fazer uma coisa que lhe é ainda impossível no plano da representação. Poder fazer isto a colocaria no período seguinte - o operatório concreto. Não que a criança pré-escolar não saiba tirar e pôr: ela põe e tira água de copos muitas vezes, só que ela faz isso no plano da ação - poder imaginar o tirar e o pôr implicaria poder fazer a ação no plano apenas virtual, isto é, de uma possibilidade.

A criança sabe representar a ação de tirar ou pôr, mas não sabe ainda "tirar' ou "pôr" mais água como uma representação, isto é, como uma ação virtual e não mais real. Nós compreendemos que há o mesmo tanto de água no copo e na tigela porque não se pôs nem se tirou água; se se tivesse tirado, teria ficado menos ou ao contrário. Supomos uma ação que não se realizou como um argumento para dizer que ficou igual. Ora, a criança na fase pré-operatória ainda não é capaz disso, as ações com sentido para ela são as que realiza ou vê realizar, por isso confunde estados e não acompanha transformações irrelevantes para uma
dada dimensão (a quantidade, no nosso exemplo).

Reversibilidade é a capacidade de considerar simultaneamente uma ação e sua inversa, ou sua equivalente, ou uma ação realizada e uma não realizada (virtual ou apenas possível). As ações físicas (materiais), que a criança na fase pré-operatória realiza muito bem, ocorrem sucessivamente (isto é, uma depois da outra, já que em espaço, tempo, objetos e acontecimentos definidos) e não ainda simultaneamente, pois para isto ela terá que aprender a opor uma ação material a uma ação virtual (realizável, mas não realizada naquele momento).
Por isso, Piaget diz que, no período operatório concreto, os estados estão agora submetidos às transformações reversíveis. Neste sentido, o período pré-operatório é não apenas um período de transição mas também preparatório, uma vez que é graças a ele que a criança se prepara, no sentido de construir os recursos que lhe possibilitarão compreender, isto é, realizar ações mentais (operações reversíveis), operar com símbolos, com valor de coisas.

 APLICAÇÕES À PEDAGOGIA

 • As considerações que fizemos acima são de natureza psicológica, ou seja, descrevem o desenvolvimento da criança no período pré-operatório. O professor precisa mais do que isso: quer saber o que fazer com estas informações; como derivar delas uma prática pedagógica. Supomos que esta é uma primeira decorrência: a teoria de Piaget tem um valor de compreensão do processo de desenvolvimento da criança, ou seja, pode instrumentalizar o professor a fundamentar sua prática e compreender a importância dela no cotidiano da sala de aula.

• Julgamos ter considerado, ainda que muito resumidamente, a importância das atividades sensório-motoras e as de natureza representativa (jogo simbólico, dramatização, linguagem, memória, imagem mental, desenho) para o desenvolvimento da criança. O ambiente pedagógico da criança em fase pré-operatória propicia estas atividades espontâneas? Os materiais que o professor oferece são tais que facilitam a atividade de seriação, classificação, enumeração, correspondência? A criança dispõe de jogos (mecânicos ou de construção) para que, pouco a pouco e de modo espontâneo, possa desenvolver suas noções de causalidade? O professor desperta a curiosidade da criança e estimula a pesquisa por parte dela com os materiais? O professor faz perguntas, desencadeia problemas ou dá soluções? O professor busca novas
maneiras de estimular a atividade da criança e muda de método à medida que ela coloca novas perguntas ou imagina novas soluções? Quando as soluções da criança são erradas ou incompletas, o professor propõe contra-exemplos ou atividades alternativas e sugestivas ao problema, tal que a criança possa encontrar novas soluções por meio de sua própria atividade?
Nota: Para Piaget, um dos principais objetivos da educação pré-escolar deveria ser o de ensinar a criança a observar os fatos cuidadosamente, em especial quando estes são contrários aos previstos por ela. Em outras palavras, observar, perguntar, interpretar e registrar (ao modo da criança deste período, obviamente) são atividades fundamentais, no pensar de Piaget.

• A natureza preparatória e transitiva do período pré-escolar indica a importância de as crianças deste período terem muitas atividades com seus pares, ou seja, é fundamental a formação de grupos de crianças, coordenadas ou não pelo professor, mas de preferência sem a interferência deste, tal que possam, entre si, brincar, falar, discutir, resolver problemas práticos. A passagem da ação à operação exige a possibilidade de a criança reconstruir suas ações no plano da representação, descentrar-se de seu próprio ponto de vista ou de sua ação e enfrentar o julgamento e aceitar a cooperação do grupo. Por isto, Piaget considera que o
segundo aspecto importante da educação pré-escolar é o desenvolvimento de habilidades de comunicação. Isto é, agora não basta mais à criança realizar as ações, é preciso que ela fale delas para outrem, que as reconstitua por via narrativa e que aprenda a descrevê-las; em palavras, quadros e desenhos. Por isto, tanto do ponto de vista da socialização da criança como de seu desenvolvimento intelectual, é importante que tenha experiência de trabalho em equipe.

• Defender a atividade espontânea da criança, a vida em grupo, a manipulação e a experimentação com materiais não significa que o professor deva ser permissivo e passivo diante delas. Não significa também dar-lhes lições e usar de sua autoridade para determinar o curso dos acontecimentos. Como diz Piaget, "compreender sempre significa inventar ou reinventar e cada vez que o professor dá uma lição, ao invés de possibilitar que a criança aja, impede que ela invente as respostas".*
 
* PIAGET, Jean. Como se desarrolta lamente del nino. In Los anos postergados: la primera infancia, p. 69.

• Mas o que se reivindica para a criança há, também, de ser reivindicado ao professor. Ou seja, tem ele liberdade e responsabilidade para inventar ou experimentar suas próprias técnicas, para defender seus pontos de vista? A autonomia da criança e seu desenvolvimento no sentido de formar um pensamento operatório, reversível, graças ao qual poderá compreender e optar, determinando seu destino, só é possível se o professor puder desenvolver também sua própria autonomia, se ele puder falar e defender seus pontos de vista e sua experiência na sala de aula. Por isto, me agradam o objetivo e a forma deste encontro. Práticas governamentais que determinam o que o professor deve fazer na sala de aula, a teoria vigente
para explicar e compreender o desenvolvimento, apesar das boas intervenções promover a melhor educação da criança - pode resultarem fracasso. Espero, por isto, que ao lado deste texto, o professor possa escrever o seu, tirado de sua experiência e reflexão sobre sua prática, e que, ao fazer isto, corrija, aperfeiçoe, acrescente e reformule ambos os textos.

BIBLIOGRAFIA

INHELDER, Barbel & PIAGET, Jean. Da lógica da criança à lógica do adolescente. Ensaio sobre
a construção das estruturas operatórias formais. São Paulo, Pioneira, 1976.
PIAGET, Jean. A construção do real na criança. 2a. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1974.
. A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação. Rio de
Janeiro, Zahar, 1971.
. A linguagem e o pensamento da criança. 3á ed. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1973.
. O raciocínio na criança. 3ª ed. Rio de Janeiro, Record, 1967.
. O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro, Zahar, 1966.
. Los anos postergados: la primeva infância. Buenos Aires, Pardós/UNICEF, 1975.

PIAGET, J. & GRÉCO, Pierre. Aprendizagem e conhecimento. Rio de Janeiro, Freitas Bastos,
1974.

PIAGET, J. & INHELDER, Barbel. A psicologia da criança. 72 ed. São Paulo, DIFEL, 1982.
.O desenvolvimento das quantidades físicas na criança: conservação e atomismo. 2'2 ed. Rio de
Janeiro, Zahar, Brasília, INL, 1975.

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