domingo, 4 de novembro de 2012

SONATA DE OUTONO - RESENHA DE THIAGO M. CORREIA

Sonata de Outono (Ingmar Bergman, 1978)


“Mãe e filha. Que mistura terrível de sentimentos, confusão e destruição.”

O outono é a estação do ano caracterizada pela queda das folhas e renovação da vegetação; é quando as árvores se preparam para ganhar nova “cara”, novas folhas e frutos com a chegada da primavera. Mas enquanto não é chegada a estação das flores, as árvores permanecem por um bom tempo na direta situação de nudez aparente, onde podem ser vistas como são, sem enfeites, sem cores, sem máscaras. Foi esta a estação escolhida pelo cineasta sueco Ingmar Bergman para servir de pano de fundo para a história de duas mulheres que se preparam para deixar o que é aparentemente belo de lado e mergulharem na crueza do feio _ e que, na maior parte das vezes, é também mais verdadeiro. Sonata de Outono, a história do reencontro de mãe e filha após um hiato de 7 anos que acaba convergindo para uma dura batalha de verdades e ressentimentos, é mais um filme/estudo de Bergman sobre as relações do ser humano e a maneira como lidamos com nós mesmos. 
Para retratar a atmosfera outonal, Bergman mais uma vez contou com o primoroso trabalho de Sven Nykvist, criando na fotografia um aspecto impressionista, ainda ressaltado pelos figurinos e a direção de arte, baseados no vermelho, amarelo e verde, cores características da estação.
Bergman assina aqui também os planos mais recorrentes de sua carreira pois Sonata de Outono, apesar do tom teatral e de se passar em basicamente um único ambiente, é cinema em sua forma mais pura, com os típicos closes fechados nos rostos das atrizes e as tomadas de perfil que desvendam um tanto mais do que aquele personagem é. Mas são os assuntos abordados que fazem do filme uma espécie de resumo da obra de Bergman, já que é possível encontrar aqui toda a gama de temas que sempre perturbaram e pontuaram a carreira do diretor e que fizeram de seus filmes uma eterna busca pela compreensão de si mesmo. Da infância traumática, matriz de todos os problemas da vida adulta, à citação da existência e importância de Deus, Bergman pontua o drama de mãe e filha como todos seus dilemas pessoais e que, por sua vez, acabam tornando a história ainda mais densa e verdadeira. É quando percebemos que estamos diante de uma narrativa baseada no sentimento do ser humano que clama por amor mas que acaba gerando _em si e nos outros_ uma dor quase irremediável, capaz de acompanhar por toda uma vida, perpetuada pelo medo, a culpa e a busca pelo perdão redentor.
Porque Sonata de Outono é sobre o amor. 
Aquele amor que todos dizemos ter e que, orgulhosos, usamos em palavras fáceis e discursos calorosos, num auto-engano recorrente e gradativo. O amor que Charlotte (Ingrid Bergman) diz ter por sua filha Eva (Liv Ullmann), mas que soa tão superficial como em todas as vezes em que ela necessita ser reafirmada diante de quem está ao seu redor. Quando sua filha diz estar feliz dando aulas na paróquia local, Charlotte cita o fato de ter feito uma turnê de sucesso em escolas americanas, tocando para milhares de alunos, ressaltando o clima de competição que estabelece com Eva. É essa necessidade que faz dela um personagem forte e fraco ao mesmo tempo, sempre buscando uma fuga mais simples. Mostrar o que sente seria difícil demais, portanto Charlotte acaba optando pela superficialidade de uma provável alegria, por fingir diante dos outros o que estaria passando dentro dela. Como quando reencontra sua filha vítima de uma doença degenerativa, Helena, e se mostra capaz de fazer promessas que claramente não poderá cumprir. E mesmo estando só em seu quarto, refletindo sobre o acontecimento, Charlotte se pega num paradoxal discurso de amor e raiva, ainda mais por Eva tê-la feito passar por tal constrangimento. Ela se vê incapaz de admitir um sentimento isento de raiva ou cobrança por sua filha e acaba atribuindo a Eva sua maneria errônea de agir. Sendo assim, para ela é justificável seu sentimento dúbio e acaba seguindo se enganando e tentando enganar os outros. Sorrisos são dados, olhares são lançados e palavras são caladas. Foi dessa maneira que Charlotte conduziu sua vida e “amou” as pessoas com quem convivia: Leonardo, seu amigo recém-falecido, foi digno de seus cuidados nos momentos finais mas não obteve uma lágrima sequer ao ser relembrado por ela; seu marido, complacente e compreensivo, recebeu palavras elogiosas em cada citação, mesmo que durante a vida em comum só tenha sido presenteado com ausência e traição; Helena foi abandonada quando pequena mas ganhou um relógio de pulso da mãe quando do reencontro _certamente para contar todas as horas que lhe prendem a uma vida morta; e Eva, que sempre amou e admirou incondicionalmente a mãe quando criança mesmo recebendo em troca a mais completa indiferença, foi agraciada com uma infância impossível e nela a não eminência do desenvolvimento. Foi em Eva que Charlotte mais despejou seu falso amor e dele fez nascer um ódio grandioso e assustador.

Porque Sonata de Outono é sobre o ódio. 
O ódio que Charlotte enxerga nas palavras de Eva quando esta finalmente se vê livre para dizer tudo que manteve guardado durante toda a vida. O ódio que acusa mas que, como Eva cita em determinado momento, não pode ser diminuído diante do ódio da própria Charlotte. Aquele que a fez tomar tantas medidas com relação à filha e machucá-la quase que de maneira irreparável. A constatação de Eva de que seria na sua infelicidade que a mãe encontrava seu triunfo não deixa de ser verdadeira _ e abominável_ levando-se em conta toda a necessidade de Charlotte de se sobressair diante da filha. No momento em que Eva se dispõe a tocar um prelúdio de Chopin, admitindo de antemão uma certa deficiência de técnica, é impossível para Charlotte não viver um misto de sensações: ao observar a filha tocando, ela não esconde no olhar a decepção diante da não-perfeição; mas ao olhar diretamente para o rosto de Eva, Charlotte acaba demonstrando certa compaixão, ainda que isso não a esquive de citar todos os erros cometidos por Eva em sua interpretação, mesmo que esteja ciente de ser a responsável por causar uma imensa dor na filha.

Porque Sonata de Outono é sobre a dor. 
É sobre um prelúdio de Chopin, interpretado de forma fria e racional por Charlotte, capaz de abdicar das sensações diante da busca pela perfeição. Ela ensina para Eva: “Há dor mas sem parecer. Depois um breve alívio. Mas ele some de repente, e a dor continua a mesma.” E ao começar a dedilhar no piano tem sobre intensa observação o olhar de Eva, atenta à técnica que a mãe esbanja e constatando assim sua aparente derrota em mais uma batalha emocional. Mas quando o olhar de Eva é direcionado ao rosto da mãe (exatamente como aconteceu na cena anterior, só que em posições opostas), o que percebemos é toda a amargura reprimida por ela e que acabou gerando uma espécie de medo da figura da mãe.

Porque Sonata de Outono é sobre o medo. 
O medo que Eva tinha da mãe quando criança e que a fazia não dizer nada, mesmo quando desejava intensamente. E vindo desse medo, a incapacidade de comunicação, a dificuldade de expressão e a aceitação do que lhe era dado. Por conta disso, Eva acabou se tornando uma mulher incapaz de questionar muito as coisas que lhe aconteciam, sendo muito mais espectadora da própria vida do que protagonista da mesma. E Bergman acaba dando a real dimensão dessa situação nos flashbacks que são inseridos ao longo do embate de Eva e Charlotte, quando somos transportados para a infância de Eva (volto a dizer, a origem de todos os problemas emocionais do ser humano, como em todo filme de Bergman) mas não participamos dos acontecimentos ativamente; o que é dito não pode ser ouvido e acabamos mantendo, através da câmera sempre parada e em plano aberto, uma distância considerável do que está sendo retratado. Como se aquilo realmente só pudesse ser visto e não reparado. E assim, numa bola de neve de impossibilidades, os personagens vão se tornando cada vez mais incapazes de se comunicarem e sentirem. O marido de Eva não sabe como dizer para a mulher que a ama, Charlotte diz que sempre necessitou do carinho da filha mas que encarava o amor desta como exigências, e Helena assume o papel alegórico da mais completa impossibilidade de comunicação, ficando isolada à dependência da irmã para estabelecer qualquer contato com a mãe. E sendo a doença de Helena, mais que uma metáfora da destruição da relação familiar, a culpa incutida no futuro de Charlotte.

Porque Sonata de Outono é sobre a culpa. 
A culpa do ser humano em não perceber o que está ao seu redor, de deixar passar o que não tem mais retorno e que acaba abrindo caminho para uma único desfecho aparente: a solidão. A negligênica de Charlotte com relação à família em detrimento da carreira, a levou a uma vida de sucesso e riquezas. Mas nem ela é capaz de negar que sente falta de um lar quando está longe, ainda que não saiba o que poderia buscar lá. Talvez por Charlotte nunca ter tido um lar verdadeiro, seja ele físico ou emocional. E a dor perene nas costas que acompanha a pianista acaba sendo reflexo da própria culpa pelo abandono de si e dos outros. A perda do que lhe poderia ser caro desperta em Charlotte uma necessidade de redenção, a tentativa de algo que lhe isente da culpa eterna. E nesse âmbito, a perda dela poderia ser relativizada diante da perda de Eva: o próprio filho, morto num afogamento. Mas Eva se mantém ligada ao filho (o que não deixa de ser interessante nessa fase de Bergman, mesmo depois de ele ter negado a existência de Deus, em Luz de Inverno) e acredita que ele continua vivo em algum tipo de plano paralelo. Em determinado momento ela diz para a mãe que: “É medo e presunção acreditar em limites. Não existem limites, nem para os pensamentos, nem para os sentimentos.” Resta a Charlotte realmente acreditar na existência de uma mudança que a possibilite o perdão pelos erros cometidos.

Porque Sonata de Outono é sobre o perdão. 
Ou sobre a não possibilidade dele, já que certas coisas não tem mais volta e algumas mágoas são eternas. A vida de Eva ou de Helena não poderia mais ser mudada por conta de um arrependimento da mãe, ainda que este fosse verdadeiro. E no caso de Charlotte, a necessidade de ser perdoada seria o que lhe restava para se manter ainda próxima de uma certa humanidade, mas até que ponto ela realmente estaria disposta a mudar? Todas as revelações e verdades são culminadas na mais dura fala de todo o longa, quando Eva diz á mãe sobre o que aconteceu entre Helena e Leonardo e o estado daquela diante da partida deste, ocasionada por culpa de Charlotte e, obrigada a constatar a dura realidade, fulmina: “Não há desculpas. Só há uma verdade e uma mentira. Não pode haver perdão.”

No pragmatismo aparente se encerraria mais uma obra-prima de Ingmar Bergman, mas cabe lembrar que o filme é sobre o outono, e que a estação tem fim. Com a queda das folhas, as árvores acabam sendo reveladas em sua essência mais crua e feia. Mas ainda que as folhas caídas não possam mais retomar vida nas árvores e fiquem perdidas no chão, em algum momento a primavera virá e com ela o nascimento de novas folhas e novas possibilidades de cores. Porque Sonata de Outono é sobre a esperança.

Preste atenção: Em toda a intensidade da seqüência de execução do prelúdio de Chopin, uma das mais belas _e fortes_ cenas de toda a história do cinema. Amparado pelas brilhantes interpretações de Liv Ullmann e Ingrid Bergman, Ingmar Bergman permite que suas atrizes expressem com uma economia assustadora de gestos, faciais ou corporais, todo o turbilhão de sentimentos que se passa com aquelas mulheres. E fora que Chopin é Chopin…

Porque não perder: Primeiro e único filme de Ingrid Bergman com seu compatriota Ingmar Bergman; a melhor interpretação desta que foi uma das maiores estrelas da história do cinema; uma das maiores interpretações da maior atriz da história do cinema (na minha opinião), Liv Ullmann; o melhor (e olha que afirmar isso é muito complicado) filme do maior diretor da história do cinema…é muito “melhor da história” para perder, não concorda?
4/4
Thiago Macêdo Correia

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