sábado, 30 de julho de 2011

Psicanálise & Educação: (im)passes subjetivos contemporâneos. Maria de Lourdes Ornellas (org.)

O livro Psicanálise & Educação: (im)passes subjetivos contemporâneos, organizado pela profª Maria de Lourdes Soares Ornellas, é uma coletânea de artigos escritos por estudiosos/pesquisadores de Psicanálise e Educação e Representação Social, quase todos da Uneb – Universidade do Estado da Bahia.
O prefácio foi escrito pelo Prof. Dr. Marcelo Ricardo Pereira de forma singular e cuidadosa, e é a transcrição dessa letra que trazemos aqui para apresentar a obra.
Boa leitura!
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Prefácio do Livro Psicanálise e Educação: (im)passes subjetivos contemporâneos.
Marcelo Ricardo Pereira
GESTO BAIANO
Entre as primeiras cartas que Freud escrevera a seus precursores do Brasil, interessados nas idéias do vienense que convulsionariam o pensamento ocidental, encontram-se as palavras postadas em 10 de janeiro de 1910, ao médico Osório César, em resposta à leitura do seu recém-lançado Memórias do Hospital Juquery; e também em menção às repercussões que sua jovem ciência estava causando na clinica psiquiátrica brasileira à época. A carta fora encerrada assim:
Prezado colega! (...) Causa-me grande satisfação a prova de interesseque a nossa psicanálise vem despertando no distante Brasil e apresento-lhe os meus protestos de estima e consideração.
                                                                                       Seu, Freud.
Muito embora dirigida a César, essa carta bem poderia ter sido escrita ao médico baiano Juliano Moreira, a primeira pessoa a falar, divulgar e adotar a psicanálise no Brasil. Considerando o fundador psiquiatria moderna de nosso país, Moreira era negro, lia corretamente o alemão e em 1899, na Faculdade de Medicina da Universidade da Bahia, teve acesso e leu os artigos escritos por Frus em 1896 e1897. Precoce, com imberbes vinte e três anos, o baiano foi nomeado professor daquela universidade e pouco tempo depois, em 1903, passou a dirigir o Hospital Nacional dos Alienados, na então capital nacional, Rio de Janeiro, e fez da psiquiatria uma especialidade autônoma da medicina. Naõ apenas a psiquiatria, mas também a psicanálise deve ao gesto de Moreira sua marca inaugural, mas também a psicanálise deve ao gesto de Moreira sua marca inaugural naquele que Feud chamou de “distante Brasil”.
A Bahia mostrara então sua vocação para o pioneirismo. De seu Porto Seguro, nascia uma nação; e do gesto do médico, era introduzido nessas terras o que seria um dos mais expressivos e revolucionários campos de conhecimento de nossa contemporaneidade. O país conhecera a psicanálise através dos olhos do médico baiano a quem sempre renderemos homenagem. A opartir de então, muita coisa se deu, muito pensamento se construiu, muita pratica se remodelou.
Agora, pouco mais de cem anos depois do ato inaugural de Juliano Moreira, outro capítulo vem somar-se à sua originalidade. Através do trabalho infatigável de Maria de Lourdes Ornellas e das profissionais que compõem o Grupo de Estudos em educação, Psicanálise e Representação Social, da Universidade do Estado da Bahia, a ciência de Freud ganha fôlego. Logo, algo de Moreira se atualiza no ato de Ornellas. Não estamos mais falando, entretanto, da consagrada e não menos polemica aplicação da psicanálise ao campo da psiquiatria moderna stricto sensu, como por muito tempo pode ser observado, mas falamos de sua aplicação recente a um campo tão antigo quanto especifico, a que o p´roprio Freud já evocara desde o início de seus escritos, a saber, o da educação.
Ao longo de seu século de existência, a psicanálise teve um contribuição meio dispersa no que tange à aplicação de seus constructos teóricos aos fundamentos educacionais. A despeito dos esforços  do discípulo freudiano Oskar Pfister que, junto ao seu mestre, tentou aquecer inicialmente as discussões sobre a interface psicanálise e educação, e de August Aichhorn, que dedicou um estudo a jovens delinqüentes, cujo livro fora prefaciado por Freud, não se conta tantos os que marcadamente traçaram linhas referentes a essa interface. O p´roprio Freud fizera meã culpa ao admitir ter-se ocupado pouco dos estudos sobre a psicanálise e educação, em suas Novas conferencias introdutórias, de 1993. Ainda que julgasse tais estudos de fundamental importância e depositasse sobre eles os mais decisivos interesses e esperanças, é no mínimo lacunar o debate que se fez à época acerca da psicanálise e educação.

Contra isso, dizia ele, em 1925: nenhuma das aplicações da psicanálise excitou tanto interesse e despertou tantas esperanças, e nenhuma, por conseguinte, atraiu tantos colaboradores capazes, quanto seu emprego na teoria e prática da educação.
Mas sabemos que essa assertiva, ainda que bastante encorajadora, foi muito mais a expressão do seu desejodo que a de um retrato fiel do que acontecia tanto em sua época quanto ao longo do século XX. Algumas experiências se fizeram notar e, entre elas, mais uma vez, há de se registraroutro gesto baiano. Sublinho o ato inaugural do médico Arthur Ramos, que era alagoano, mas radicado em Salvador e formado pela Universidade da Bahia, a mesma em que  estudara Juliano Moreira alguns anos antes. Ramos introduziu, ao lado de outros temas, debates pioneiros sobre Educação e Psicanálise e A criança problema, títulos de algumas de suas publicações. Tratava-se  de estudos que conjugavam o pensamento freudiano e o escolanovismo, bem no cerne do higienismo dos anos 1930 e da conformação histórica do período.
Hoje, porém, talvez estejamos em melhor posição de fazer valer o peso do desejo freudiano de estudar essa interface, e fazê-la cada vez mais substancializada. A psicanálise, bem como os estudos mais recentes sobre educação que interrogam as novas formas de subjetividade, de modos contemporâneos de sintoma, os efeitos do gozo, as relações transferenciais e os discursos na ambiência pedagógica, a exemplo do que analisa o presente livro, vêm apostando numa fértil conexão entre esses dois campos do saber. São vários os autores atuais que fazem a tal aposta, e este livro de Ornellas e grupo é uma mostra do que vem ocorrendo em diversas universidades, instituições psicanalíticas e outros de pesquisa de várias partes do mundo.
Partindo dos primeiros resultados de investigações realizadas pelo Grupo de Estudos em educação, Psicanálise e Representação social, e aceitando a influencia do pensamento lacaniano, os autores abordam questões fundamentais da problemática atual do campo educativo. Será que o coordenador pedagógico inclui em sua prática a escuta do professor, como esclarece a psicanálise? – eis a pergunta de Poliana de Santana, que pode ser reconduzida ao artigo de Adriana Ponte e Telma Cortizo. As autoras acreditam que não existe diálogo se não houver troca de posição de fala e escuta, e se professores e alunos não são capazes de interpretar o que está sendo anunciado. A p´ropria psicanálise as auxilia a pensar na finitude do dialogoe como ele so pode mesmo se inscrever ao nível da ilusão. Mas é Edileide Silva e Ludmilla Fonseca que, à maneira de Lacan, elevam o ato de escuta a um “estilo da psicanálise para a educação”; a conferir.
Parece mesmo haver um fosso entre a escola que é oferecida e a escola que é desejada pelos pais e filhos, problematiza Thais Villar. Na que é oferecida, o sujeito de consumo se superpõe ao sujeito de desejo.Sobre isso, Eliana Menezes parece reter uma idéia pertinente: quando não há travessia do desejo, o sujeito não pode querer saber para se constituir como tal. Resta verificar como a escola pode operar isso. Logo, com base em pesquisa bibliográfica, Ana Xavier reivindica com razão um ato de educar capaz de aliar singularidade e diversidade, para que tenhamos uma “sociedade mais justa”, “conseguindo conviver harmonicamente”. Com efeito, sabemos que isso é mais a expressao do desejo da autora, e de todos nós que atuamos no campo educativo, do que a possibilidade real de isso se efetivar, como a ensina a psicanálise. De fato, que podemos requerer, com Arlene Pessoa, não é uma educação nostálgica de uma lei simbólica, mas implicação do professor – e do aluno – a respeito do seu ato, sua autoridade e seus limites.
A crise do sujeito contemporâneo é outro tema central que atravessa todo o livro. E é importante frisar que o sujeito quando se vê como tal, desde Descartes, se vê também em crise por nunca estar em condição de se adequar integralmente ao social. Seu desejo sempre se encontra um pouco fora da norma. Para Daniela Radel, por exemplo, isso fica patente ao percebermos o encurtamento da infância e o prolongamento da adolescência. Nesse sentido, o problema da constituição da subjetividade adolescente é recolocada por Ademildes Custódio e Maria das Graças Vilas. As autoras interrogam o jargão “aborrecente” e o “papel da família e da escola”. Claudia Opa aposta na conexão entre a arte, a educação e a psicanalise para, quem sabe, possibilitar aos adolescentes transformações na “relação consigo, com o outro e com o mundo”.
Vânia Teixeira recupera a expressão amódio, de Lacan, para refletir sobre a ambivalência dos afetos na relação transferencial estabelecida entre o professor e o aluno. Este mesmo tema é objeto de análise de Lili Silva, que investiga a peculiaridade do afeto na composição do método de aprender.
E, por fim, o artigo que abre o livro é o de Maria de Lourdes Ornellas. Nele, a autora – que também o organiza – examina os quatro discursos, estabelecidos pela álgebra lacaniana, para afirmar o quanto eles circulam em vários lugares, sendo os atos e não os espaços aquilo que os especificam. Conclui tambpem que o mestre, por exemplo, não se funda apenas no discurso que leva o seu nome, mas que seu ato o enlaça igualmente aos outros três discursos – tese com a qual comungo e a defendo em A impostura do mestre.
Eis, portanto, uma vinheta do que o livro contém e oferece ao leitor. O grupo liderado pro Ornellas mostra-nos neste volume o vigor embrionário da psicanálise aplicada ao campo da educação. Não resta dúvida de que a psicanálise e a educação na Bahia tem agora e terá sempre um nome: o de Maria de Lourdes Ornellas e das profissionais de seu grupo.
Elas estão escrevendo o capítulo de uma grande obra que se iniciou com Juliano Moreira, que passou por Arthur Ramos e que durante um século convulsionou as concepções de subjetividade, infância, adolescência, clínica, transferência, afeto, discurso e ambiência escolar, entre os tantos temas abordados nas próximas páginas. O gesto baiano se prolonga  neste livro. Deixo-o agora aos olhos de leitores que saberão, cada um a seu modo, entender o peso desse gesto, que tenho a honra de, cúmplice, compartilhar e brindar com os autores.
Ludmilla Fonseca, Prof. Dr. Marcelo R. Pereira e Edileide Antonino
Marcelo Ricardo Pereira

Psicanalista e professor da UFMG

Belos Horizonte, primavera de 2010.

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