sexta-feira, 30 de maio de 2014

PROVA OU AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM?


 

Chegando ao final do semestre letivo, penso que devemos nos perguntar: a proposta de minha disciplina foi atingida? O que pretendemos avaliar no final do semestre letivo? 

É hora de avaliar não só a aprendizagem dos alunos, mas as nossas técnicas de ensinagem enquanto professores. As provas e os exames são meros instrumentos de classificação e seleção, como diz o prof. Cipriano Luckesi (Ufba). Para ele, a avaliação deve ser um instrumento de juízo de qualidade sobre dados relevantes para uma tomada de decisão. Ou seja, avalia-se para refletir sobre o processo de ensinagem e de aprendizagem, para tomada de novas decisões que visem a melhora do quadro educativo.

É preciso que desvinculemos provas de avaliação, são termos diferenciados. É claro que após anos e anos de um ensino tradicional, cuja prova era o objetivo final dos cursos, não será tão simples a mudança. No entanto, sabemos que ela é possível a partir da reflexão pessoal de cada docente sobre o tema, a partir da pergunta que eu trouxe no início desta fala: o que pretendemos avaliar no final do semestre letivo? Quero mesmo avaliar, vendo de uma forma muito séria o meu trabalho, ou desejo apenas classificar o aluno numa escala determinada? Vou corrigir a prova e contar, somar os pontos, ou vou pensar que minha proposta maior é diagnosticar para novas intervenções e incluir o sujeito aprendente?

Se pensarmos bem, avaliar nos moldes que temos visto nada mais é senão uma tradição antidemocrática e autoritária, centrada na pessoa do professor e no sistema de ensino e não no sujeito que está no lugar de aprendente.

Vamos repensar isso?
 
Ler a indicação abaixo vai ajudar muito!!

Cipriano Carlos Luckesi, Avaliação da aprendizagem na escola: reelaborando conceitos e recriando a prática, Malabares Comunicação e Eventos, Salvador/BA, 2005.
 


quarta-feira, 14 de maio de 2014

ENTREVISTA COM LUCKESI SOBRE AVALIAÇÃO - REVISTA NOVA ESCOLA

Entrevista com Cipriano Carlos Luckesi

Provas e exames, segundo o educador, são apenas instrumentos de classificação e seleção, que não contribuem para a qualidade do aprendizado nem para o acesso de todos ao sistema de ensino

(Márcio Ferrari) 

Cipriano Luckesi. Foto: Edson Ruiz
CIPRIANO LUCKESI   "Proponho que as escolas invistam em uma práticapedagógica construtiva e paralelamentetreinem para o vestibular"
Cipriano Carlos Luckesi é um dos nomes de referência em avaliação da aprendizagem escolar, assunto no qual se especializou ao longo de quatro décadas. Nessa trajetória, que começou pelo conhecimento técnico dos instrumentos de medição de aproveitamento, o educador avançou para o aprofundamento das questões teóricas, chegando à seguinte definição de avaliação escolar: "Um juízo de qualidade sobre dados relevantes para uma tomada de decisão". Portanto, segundo essa concepção, não há avaliação se ela não trouxer um diagnóstico que contribua para melhorar a aprendizagem. Atingido esse ponto, Luckesi passou a estudar as implicações políticas da avaliação, suas relações com o planejamento e a prática de ensino e, finalmente, seus aspectos psicológicos. As conclusões do professor paulista, que vive desde 1970 em Salvador, apontam para a superação de toda uma cultura escolar que ainda relaciona avaliação com exames e reprovação. "Estamos trilhando um novo caminho, que precisa de tempo para ser sedimentado", diz. Luckesi, que é professor aposentado, orientador de pós-graduandos e integrante do Grupo de Pesquisa em Educação e Ludicidade da Universidade Federal da Bahia, concedeu a seguinte entrevista a NOVA ESCOLA.
Como é feita, hoje, a avaliação de aprendizagem escolar? 
A maioria das escolas promove exames, que não são uma prática de avaliação. O ato de examinar é classificatório e seletivo. A avaliação, ao contrário, diagnóstica e inclusiva. Hoje aplicamos instrumentos de qualidade duvidosa: corrigimos provas e contamos os pontos para concluir se o aluno será aprovado ou reprovado. O processo foi concebido para que alguns estudantes sejam incluídos e outros, excluídos. Do ponto de vista político-pedagógico, é uma tradição antidemocrática e autoritária, porque centrada na pessoa do professor e no sistema de ensino, não em quem aprende.

Que métodos devem ser usados? 
A avaliação é constituída de instrumentos de diagnóstico, que levam a uma intervenção visando à melhoria da aprendizagem. Se ela for obtida, o estudante será sempre aprovado, por ter adquirido os conhecimentos e habilidades necessários. A avaliação é inclusiva porque o estudante vai ser ajudado a dar um passo à frente. Essa concepção político-pedagógica é para todos os alunos e por outro lado é um ato dialógico, que implica necessariamente uma negociação entre o professor e o estudante.

Por que se insiste na aplicação de provas e exames?
Nós, educadores do início do século 21, somos herdeiros do século 17. O modelo atual foi sistematizado na época da emergência da burguesia e da sociedade moderna. Se analisarmos documentos daquele tempo, como o Ratio Studiorum, dos padres da ordem dos jesuítas, ou a Didactica Magna, do educador tcheco Comênio, veremos que o modelo classificatório que praticamos hoje foi concebido ali. Muitos outros educadores propuseram coisas diferentes desde então, mas nenhuma dessas pedagogias conseguiu ter a vigência da pedagogia tradicional, que responde a um modelo seletivo e excludente. Existem também razões psicológicas para a insistência nos velhos métodos de avaliação: o professor é muito examinado durante sua vida de estudante e, ao se tornar profissional, tende a repetir esse comportamento.

Existe alguma justificativa pedagógica para o recurso da reprovação? 
Do ponto de vista pedagógico, de fato, não existe nenhuma razão cabível. A reprovação é um fenômeno que, historicamente, tem a ver com a ideologia de que, se o estudante não aprende, isso se dá exclusivamente por responsabilidade dele. As frases reveladoras são aquelas do gênero "eles não querem mais nada", "não estudam", "não têm interesse" etc. Muitas outras razões, além do próprio aluno, podem conduzir ao fracasso escolar, como as políticas públicas que investem pouco no professor e no ensino, com baixos salários e problemas de infra-estrutura. O recurso da reprovação não existe em sistemas escolares de países que efetivamente investem na qualidade da aprendizagem.

O que revelam os altos índices de reprovação, sobretudo na 1ª série? 
Há aspectos internos e externos à escola. Os externos são a escassez de recursos e as más condições de ensino. Os fatores internos dizem respeito à relação professor-aluno. O professor ensina uma coisa, o estudante entende outra; ensina de uma forma e solicita que seja colocada em prática de outra; ou não usa atividades inseridas no contexto do aluno. Por exemplo: nas séries iniciais, o programa prevê o aprendizado de números múltiplos. Então pergunta-se no teste: "Quais os números menores de 200 múltiplos de 4 e de 6?" A parte que fala em "menores de 200" só está lá para confundir o aluno e complicar a questão. Muitas crianças são reprovadas porque o instrumento de avaliação é malfeito e as conduz ao erro.

Por que tanta repetência na fase de alfabetização? 
Existem estudos estatísticos mostrando que o tempo médio de alfabetização no Brasil é de 22 meses. Em algumas regiões, alfabetiza-se em seis meses; em outras, demora-se três anos. Por isso se estabeleceram os ciclos de aprendizagem. Mas não se investiu na qualidade. Se houvesse esse investimento, um ano de alfabetização seria suficiente. Aqui na cidade de Salvador há um projeto em que são atendidos meninos que não conseguiram aprender a ler e escrever em até seis anos. Com uma abordagem correta, alfabetizaram-se em seis meses. Eu tenho certeza de que qualquer criança com 6 anos e meio ou 7 se alfabetiza em um ano.

Até que ponto o sistema de vestibular determina as avaliações escolares hoje?Vestibular não tem a ver com educação, mas com a incapacidade do poder público de fornecer ensino universitário para quem quer estudar. Agora, todo o ensino, desde o Fundamental, está comprometido com o vestibular. É por isso que é tão comum a adoção de testes que não medem o aprendizado, mas treinam para responder perguntas capciosas. Eu proponho que as escolas invistam em uma prática pedagógica construtiva e paralelamente treinem para o vestibular, com simulados como os feitos pelos cursinhos. Já existem escolas no Brasil que investem na qualidade de ensino e ao mesmo tempo conseguem colocar mais de 90% dos seus estudantes na faculdade, sem necessidade de cursinho.

O que é preciso para planejar a avaliação de um determinado período letivo? O currículo escolar estabelece conteúdos para cada nível. É um parâmetro que tem de ser conhecido. Depois é essencial o planejamento de ensino, que direciona a prática pedagógica. Vamos supor que eu vá ensinar adição. Vou trabalhar o raciocínio aditivo, fórmulas de adição, propriedades, solução de problemas simples e solução de problemas complexos. Esse é o panorama que irá assegurar a prática de avaliação. Se o estudante tem o raciocínio, mas dificuldade de operar, preciso treinar essa fase. Um planejamento didático consciente prevê a elaboração de instrumentos e a correção deles quando ela for necessária para a reorientação do curso do aprendizado.

De que forma a preparação do currículo influi nesse processo? O currículo tem de distinguir e prever o que é essencial. O que for ampliação cultural deve ser abordado apenas se houver tempo. Muitas vezes o que ocorre é uma distorção: tomar o livro didático como roteiro de aulas e considerar essencial o que está ali como ilustração, curiosidade, entretenimento.

O uso de notas e conceitos pode servir a um projeto de avaliação eficaz? 
Notas ou conceitos têm por objetivo registrar os resultados da aprendizagem do aluno por uma determinada escola. Eles expressam o testemunho do educador ou da educadora de que aquele estudante foi acompanhado por ele ou ela na disciplina sob sua responsabilidade. O registro é necessário. Afinal, nossa memória viva não é capaz de reter tantos dados relativos a um estudante, quanto mais de muitos, e por anos a fio. O que ocorreu historicamente é que notas ou conceitos passaram a ser a própria avaliação, o que é uma distorção. Se os registros tiverem por objetivo observar o processo de aprendizagem de cada aluno e sua conseqüente reorientação, eles subsidiam uma avaliação formativa. Mas não se esses registros representarem apenas classificações sucessivas do estudante.

Como avaliar o modo particular como cada um aprende? É possível um atendimento tão individualizado? 
Existe uma fantasia de que, quando se fala de uma avaliação eficiente, estamos nos referindo ao atendimento de três ou quatro estudantes por vez. Mas os instrumentos de coleta de dados ampliam a capacidade de observar do professor. Se eu aplico uma avaliação para 40 alunos, não há mudança do ponto de vista da qualidade. Cada um vai manifestar sua aprendizagem por meio do instrumento escolhido. Avaliação não precisa ser por observação direta, mas por instrumentos como teste, questionário, redação, monografia, participação em uma tarefa, diálogo. Em uma classe numerosa, não posso usar entrevistas de meia hora para cada aluno. Vou produzir questionários de perguntas fechadas e trabalhar mais de perto com quem não tiver um desempenho satisfatório.

Quais são as vantagens e desvantagens dos trabalhos em grupo? Se a intenção do professor é fazer um diagnóstico do desempenho de cada um, o trabalho em grupo não vai ajudar muito, porque só avalia o conjunto. Ele é mais útil como atividade de aprendizagem ou construção de tarefa. Por outro lado, o trabalho em grupo favorece o crescimento do indivíduo entre seus pares.

Avaliação envolve um alto grau de subjetividade. Como evitar ou atenuar isso?
Há dois aspectos a considerar. Um é que o professor precisa estar honestamente comprometido com o que acredita, e isso é uma atitude subjetiva, não tem jeito. Outro aspecto é psicológico e exige autotrabalho para não deixar que questões pessoais interfiram nas profissionais. Evitar a subjetividade, nesse sentido, tem a ver com cuidar de si mesmo e do cumprimento de seus compromissos.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

LUDICIDADE E ATIVIDADES LÚDICAS: uma abordagem a partir da experiência interna (ÚLTIMA PARTE)

Cipriano Luckesi (CONTINUAÇÃO) 


Este material foi obtido através do website de Cipriano Carlos Luckesi 

4. Algumas observações, ainda

Enquanto anteriormente, eu citava um trecho de escritos passados meus sobre a compreensão da ludicidade, dizia que uma “atividade lúdica poderia ser divertida ou não”. A expressão “ou não” merece, minimamente, uma explicitação.
Como tenho definido, reiteradamente, que a ludicidade é um estado interno de experiência plena, importa observar que as experiências divertidas podem ser lúdicas, como também não, assim como experiências não divertidas podem ser lúdicas.
Por exemplo, uma atividade muito comum em grupos de pessoas, seja de crianças, adolescentes ou adultos, é colocar alguém na berlinda e iniciar um processo de tirar o riso de todos a partir de selecionar e ridicularizar um ato, um modo de ser ou uma experiência dessa pessoa. Os apelidos, na maior parte das vezes, provêem dessa experiência. Uma mulher alta recebe o nome de “garça”, um magro recebe o nome de “palitinho”, e outros mais. Será que essas pessoas se sentem bem sendo assim chamadas? Mas, todos continuam a chamá-la dessa forma, sempre achando graça; e, quando a graça acabar, por hábito, a pessoa levará esse nome por muitos anos ainda ou pelo resto da vida.. Ocorre isso também a partir de um gesto repetido, de uma palavra fora do lugar, entre muitos outros. Todos riem e se divertem, menos o indivíduo que é objeto da chacota.
As piadas, no geral, são todas desqualificadoras. Será difícil encontrar uma que não o seja. Além disso, existem “brincadeiras” praticadas socialmente, onde um será o “pato”; todos sabem que ele vai cair no engodo, menos ele; e todos esperam, silenciosamente, esse momento para rir dele. Isso se dá como na Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Márquez: todos sabiam que um personagem ia morrer, menos ele. Aqui, a atividade pode ser dito que é divertida (para alguns), mas nada lúdica, pois que alguém está excluído da experiência, sendo vítima de uma experiência coletiva, sendo usado para tirar o riso dos outros. Nessas experiências, há um “quê” de perversidade: alegrar-se a partir da miséria alheia. Divertido, mas não-lúdico.
Por outro lado, importa observar que a ludicidade não vem nem pode vir sempre do brincar, o que não quer dizer que não possa existir um “brincar”. O brincar da criança é brincar, o brincar do adulto é “brincar” é ter uma ludicidade de adulto, diversa da ludicidade da criança. Certa vez, coordenava um grupo de trabalho com atividade lúdicas. Uma participante lamentava não poder mais brincar como brincava quando menina, com suas bonecas, de cazinha, com a despreocupação...  Então, um outro participante do grupo lembrou-lhe que agora, que trinta anos, ela brincava de outras coisas: tomava decisões sobre sua vida, fazia sexo, ia para às festas sozinha, viajava, trabalhava, ganhava seu dinheiro e o utilizava como queria, etc... Há ludicidade nas atividades da criança e do adolescente e do adulto. São experiências lúdicas, mas tendo por base atos diferentes. O que permanece é o estado interno de alegria, de realização, de experiência plena. O ser humano se desenvolve e, com o desenvolvimento, os objetos de ludicidade vão se modificando, o que não quer dizer que um adulto não possa nem deva, um dia, experimentar novamente brinquedos de sua infância e, isso, com ludicidade.
Dentro desta perspectiva, ainda uma observação: trabalho e ludicidade. O trabalho na sociedade capitalista se caracteriza exclusivamente como trabalho produtivo, ou seja, de alguma forma, ele deve dar lucro, mesmo que seja com sacrifício da vida e de seu significado, ou seja, pela alienação. No caso, o ser humano tem que trabalhar para produzir mais capital, não porá realizar-se nos anseios de sua alma. O trabalho como “valor de troca”, servindo ao capital, e não como “valor de uso”, servindo à vida. Essa foi uma das importantíssimas descobertas de Marx, ao estudar a sociedade capitalista.
Nesse contexto, nós todos assimilamos a crença de que trabalho é sério, pesaroso; trabalho é trabalho, ludicidade é divertimento. Existem muitas frases cotidianas, que nós todos utilizamos inconscientemente, e que revelam essa crença de que o lúdico não é sério: “Isso aqui não é brincadeira; é trabalho duro”; “Agora, acabou a brincadeira, vamos para o sério”; “Aqui, nesse lugar, não se brinca, se trabalha”. E outras mais, que cada um de nós pode catalogar. Em síntese, trabalhar não pode ser lúdico, não pode trazer esse estado de experiência plena de alegria interna.
Todavia, acredito que o trabalho, fora da ótica capitalista, é lúdico, porque criativo e prazeroso. Uma psicanalista chamada Lenore Terr escreveu um livro, que li numa tradução espanhola, intitulado El Juego: porque los adultos necessitan jugar, Editorial Paidós, Barcelona, onde, entre muitas outras coisas, ela trata da relação trabalho e ludicidade, num capítulo cujo nome é: “El juego como trabajo, el juego como vida”. Aí ela relata a entrevista que fez com o dono de um restaurante, que, de alguma forma, passou a vida em torno da comida, como menino indo comprar pão e imaginando como ele era feito, depois como pequeno trabalhador dessa padaria, varrendo o chão e observando maravilhado como o pão era feito; a seguir, trabalhando como garçon, o que lhe dava muita mobilidade e alegria na vida. O “restaurante parecia-lhe uma atividade bastante lúdica” e, com isso, ele também não conseguia dar-se conta de que a medicina ou a advocacia poderia ser prazerosa e alegre para outra pessoa, desde que para ele não parecia ser. E, então, ele decidiu que “a comida era aquilo que ia fazer pelo resto de sua vida” e dedicou-se a ela; seus horários, suas práticas, seu modo de ser e de relacionar-se, tudo estava em volta da comida. Gosto de cozinha, gosto de amassar o pão, gosto do mercado, gosto de trabalhar sozinho na cozinha, gosto de trabalhar com os outros, gosto de ensinar, gosto de aprender --- essas foram expressões dele, no seu depoimento. Aqui, trabalho é sério, no sentido de que é produz bens --- não do ponto de vista do capital, mas do ponto de vista de produzir bens para satisfazer a vida --- e, ao mesmo tempo, é alegre e lúdico.
A atividade adulta no trabalho pode ser internamente lúdica; não é o trabalho que é não-lúdico, mas sim o trabalho produtivo, no seio do capital. Parafraseando Marx, diria que “trabalho é trabalho; ele só é produtivo, no contexto da mais valia, na sociedade capitalista”. E, nesse contexto, no geral, não há e dificilmente haverá ludicidade no trabalho: o horário de trabalho é o horário da empresa, as regras são as regras da empresa, o modo de vida são os modos determinados pela empresa, ou seja, o trabalho na sociedade capitalista é alienante e, por isso, mesmo não-lúdico. Que tal tentar fazer do nosso trabalho uma experiência lúdica, mesmo no seio da sociedade capitalista? É um desafio para todos nós servirmo-nos das contradições e utilizá-las a favor da vida. São elas que produzem o movimento de transformação.
Ao final, ainda uma segunda observação: pareceria que a compreensão de ludicidade, aqui exposta, conduziria ao individualismo e, por tabela, ao egoísmo narcísico. Caso a experiência lúdica seja verdadeiramente lúdica, ela será translógica, porque plena, para além de julgamentos e preconceitos; será integrativa entre os seres humanos, desde que nesse nível de experiência, vivenciamos o Todo e nele não há diferenças, não há formas melhores ou piores; é o Tao, onde todas as coisas se dão e existem integradamente.
Caso possamos viver essa experiência, estaremos fazendo contato como nossa Essência e, por conseqüência, nos abrindo para a compaixão, não como um ato piegas, mas sim como um ato de sofrer com (cum patior, do latim), de agir com o outro, de viver em diálogo. De amar e ser amado --- essa experiência profundamente exigente e política, na vida de cada um de nós.
Vale lembrar uma última coisa: uma das quatro dimensões da experiência humana uma é a do Nós, a da convivência, dos valores comunitários, da ética. As atividades lúdicas poderão ser praticadas individualmente; não há dúvida quanto a isso; porém, há muito mais força, quando são praticadas coletivamente. Muitas delas, “não tem graça”, quando praticas por um indivíduo isoladamente. E isso, implica em fazer contato com a Essência e, nesse contexto, com o outro. Esse é o lugar da compaixão.


terça-feira, 6 de maio de 2014

LUDICIDADE E ATIVIDADES LÚDICAS: uma abordagem a partir da experiência interna PARTE 3

Cipriano Luckesi  (Continuação)


Este material foi obtido através do website de Cipriano Carlos Luckesi

3.                  Atividades lúdicas e a restauração do equilíbrio entre as camadas embrionárias constitutivas do ser humano

Para este tópico, vou servir-me de conhecimentos originários da Biossíntese, que é uma área de conhecimentos criada por David Boadella, um psicoterapêuta somático inglês, no decorrer da década de setenta, e vem sendo permanentemente recriada por ele nesses últimos trinta anos. A Biossíntese não trata de ludicidade, mas estarei aproveitando alguns de seus conceitos básicos, fazendo pontes para compreender o significado interno da vivência de experiências lúdicas.
O ser humano é constituído, embrionáriamente, por três camadas, denominadas germinativas: endoderma, mesoderma e ectoderma[1]. Em torno do décimo quarto dia após a concepção, as células do novo ser, que até esse momento eram indiferenciadas, especializam-se, formando cada uma dessas três camadas; o que implica que decidem  por compor um ou outro conjunto de órgãos constitutivos do ser humano, relativos a cada uma dessas camadas.
.O endoderma dará origem a todos os órgãos internos moles do torax e do abdomen, órgãos aos quais se vinculam nossos sentimentos. O mesoderma constituirá todo nosso sistema de sustentação e movimento: o esqueleto, a musculatura, o sistema circulatório. O ectoderma constituirá o sistema nervoso central e todo o sistema de comunicação do ser humano com o mundo exterior; ou seja, dá origem ao sistema nervoso central e a todas as suas ramificações, que se estendem para todas as partes do corpo, como também para os órgãos dos sentidos, que nos colocam em comunicação com o mundo externo a nós mesmos. Essas três camadas germinativas dão origem a três modos de ser de cada um de nós: sentir, pensar e agir. Sentimento, pensamento e movimento são três componentes de nosso estar no mundo, na medida em que, ao exercitar cada um desses modos de ser, ao mesmo tempo, estamos exercitando os outros dois.
Esses três conjuntos de órgãos manifestam-se em três partes distintas do corpo: a cabeça (ectoderma), o tronco e membros por extensão (mesoderma) e o abdomen (endoderma). E essas partes se ligam entre si por pontes: a cabeça se liga ao tronco através do pescoço, especialmente pela nuca; a cabeça se liga com o abdomen via garganta, parte interna do pescoço; e o tronco se liga ao abdomen através do diafragma. Todavia, nem sempre, ou quase nunca, essas partes funcionam harmonicamente, fato que também se expressa através dos nossos desequilíbrios entre sentir, o pensar e o agir.
A cabeça, quando está separada do corpo, através de bloqueios energéticos na nuca, pode ter duas conseqüências: de um lado, se a energia se concentrar na cabeça, pensar em excesso e rigidez na conduta; se a energia se concentrar no corpo, hiperatividade descontrolada, na medida em que a ação passa superficialmente pela reflexão, assim como pelos sentimentos.
A cabeça, quando está separada do abdomen, também, pode apresentar duas consequências opostas: ou engole as emoções, deixando-as presas no abdomen, sem poder expressá-las pelo rosto, ou expressa muita emoção pelo rosto, sem estabelecer contato com o centro do corpo; então a emoção emerge como se fosse vomitada para aliviar a pressão interna.
Por último, o tronco pode estar separado do abdomen pelo diafragma, cujas consequências opostas podem ser: de um lado, quando a energia se concentra mais no tronco, a respiração fica quase que imperceptível, o que conduz a manifestação de quase nenhuma emoção; ou, por outro lado, quando a energia se concentra mais no abdomen, num processo de estado emocional intenso, emerge a ansiedade, que não encontra um modo de expressão por um movimento harmônico. A respiração é ativa, porem, o sistema muscular é pouco ativo[2].
Em nossa vida, o ideal seria crescer com o equilíbrio interno dessas três camadas e, conseqüentemente, das três qualidades básicas do ser humano, a elas relacionadas: sentir, pensar e agir. Nosso crescimento, em parte, se faz de modo harmônico, mas uma grande parte dele, infelizmente, tem se feito pelo caminho do desequilíbrio entre essas camadas e essas qualidades. Esses desequilíbrios, manifestados pelas qualidades opostas acima indicadas, que são e/ou foram adquiridos no decorrer da própria experiência da vida de cada um, poderão ser restaurados para novas formas de equilíbrio, através de atividades terapêutico-educativas ou educativo-tepaêuticas, que restabeleçam o fluxo energético entre as partes componentes do ser humano, assim como entre as suas qualidades de sentir, pensar e agir, equilibradamente. Para entrar no contato mais profundo consigo mesmo, o ser humano tem necessidade de estar em contato com o visceral, com o sentimento, que, posteriormente, é compreendido e elaborado no pensamento e atuado ou realizado pelo movimento. Estabelecer e/ou restaurar o equilíbrio entre os órgãos originários das camadas germinativas do ser humano significa, também, restaurar o equilíbrio entre o sentir, o pensar e o agir; mas o contrário, também tem sua verdade: a experiência de restaurar o equilíbrio entre o sentir, o pensar e o agir, através da transformação de crenças, também podem atuar e atuam na reequilibração das camadas biológicas constitutivas do ser humano.
 Usualmente, em nossa sociedade, nós damos pouco lugar aos sentimentos. Em função de nossa herança iluminista, queremos aprender e ensinar somente pelo processo cognitivo e, em função de nosso comprometimento com a produtividade, buscamos sempre mais e mais atividades. Com isso, nossa experiência de sentir permanece relegada ao segundo plano; ou ao terceiro, quarto,... último plano! Portanto, nosso caminho predominante é viver no desequilíbrio dos nossos elementos constitutivos, psíquicos e corporais, ao mesmo tempo.
Que isso tem a ver com atividades lúdicas? As atividades lúdicas, por serem atividades que conduzem a experiências plenas e, conseqüentemente, primordiais, a meu ver, possibilitam acesso aos sentimentos mais indiferenciados e profundos, o que por sua vez possibilita o contato com forças criativas e restauradoras muito profundas, que existem em nosso ser. A vivência dessas experiências, vagarosamente, possibilita a restauração das pontes entre as partes do corpo, assim como a restauração do equilíbrio entre os componentes psíquicos-corporais do nosso ser. Na atividade lúdica, o ser humano, criança, adolescente ou adulto, não pensa, nem age, nem sente; ele vivencia, ao mesmo tempo, sentir, pensar e agir. Na vivência de uma atividade lúdica, como temos definido, o ser humano torna-se pleno, o que implica o contato com e a posse das fontes restauradoras do equilíbrio.
No caso, agir ludicamente, de imediato, conduz para o contato com o sentimento, que se situa, fisiologicamente, nos remanescentes do endoderma em nosso corpo, o local do contato com as sensações e sentimentos mais profundos de cada um de nós, que por sua vez, abre as portas do ectoderma e do mesoderma, garantindo o pensar e o agir. Os alquimistas definiam o nosso abdomen como a fornalha, onde tudo se transforma. É para aí que as atividades lúdicas nos conduzem; para a fornalha dos nossos sentimentos e das nossas emoções, aos quais serve nosso pensamento e nossa ação. É nessa fornalha que encontramos as fontes restauradoras da vida, porque ainda muito primordiais, primais, básicas.
Como as atividades lúdicas, desde que vivenciadas, podem ser um suporte na construção ou na restauração do equilíbrio energético do ser humano? David Boadella diz que nós seres humanos somos constituídos por polaridades e a principal de todas as polaridades é a que se refere ao interior e ao exterior. O interior é nossa Essência, o Âmago do ser nosso, o centro dos anseios, de nossa alma. O exterior é o nosso corpo, nossa personalidade, é o campo da energia. O âmago é o Âmago, ele não pode ser manipulado; ele é o que É. Com ele, nós só podemos manter contato e esse contato é curativo, quando ocorre, devido estar para além de todo pensamento, de todo julgamento, de todo “ego”. Nossa essência é curativa porque é divina. Mas a energia, que é externa, é força e nos permite viver e agir; ela é um potencial, que, quando atualizada em nossas experiências cotidianas, pode estar ordenada ou desordenada. Ela necessita de ser ordenada para permitir nosso contato com nossa Essência. Assim sendo, caso ela seja só um potencial, ainda, podemos construí-la ordenadamente pela aprendizagem e pela educação; caso ela já esteja construída de alguma forma, ordenada ou desordenadamente, podemos reconstruí-la de forma mais adequada e funcional, tendo em vista nos possibilitar um suporte externo para entrarmos em contato com nossa Essência, nosso Âmago.
Quando ordenamos ou reordenamos nosso campo energético, ele permite um contato com nosso Âmago, com nossa Essência. E esse contato, como dissemos é curativo, na medida em que ele, desde que estabelecido, reverbera para todas as nossas experiências de vida. E esse contato com Âmago, na maior parte das vezes, será rápido e fugaz, mas será um contato e a partir dele, nossa vida vai se transformando e tornando-se o que necessita de ser. As atividades lúdicas ordenam ou reordenam o campo de nossa energia e, por isso, em momentos fugazes ou mais duradouros, nos permitem um contato com nossa Essência, por menor que seja. Com o tempo e com repetidas experiências plenas, para além do ego, vamos podendo manter um contato mais permanente com nossa Essência, vamos sendo capazes de sustentar essa experiência.
Para compreender o que é contato com o Âmago do nosso ser, transcrevo a história de vida que se segue. No caso, é preciso ter isso claro, é uma experiência a partir de uma doença, que permitiu um contato com a Essência; contudo o contato com a Essência não necessita de ser feito pela dor; pode e, acredito, deve ser através da alegria, da beleza, da experiência plena propiciada pela vivência de atividades lúdicas no decorrer da vida. O texto só nos serve para compreender o que é contato com a Essência e não para compreender o que é ludicidade; porém vale a pena lê-lo; é ilustrativo. Essa história de vida foi relatada por Rachel Naomi Remen, em seu livro As bênçãos do meu avô -  histórias de relacionamento, força e beleza, Editora Sextante
Como parte de uma pesquisa, pedi a setenta e três médicos que classificassem por ordem de importância uma lista de vinte e um valores: primeiro de acordo com o que era mais importante em seu trabalho; segundo, na vida pessoal. A lista incluía itens como admiração, controle, sabedoria, competência, amor, poder, solidariedade, alegria, fama, sucesso, e bondade. Não recebi duas listas idênticas. Ao contrário, muitas eram totalmente diferentes, A bondade, por exemplo, era o número dois na lista de valores pessoais e número quinze na lista de valores do trabalho da mesma pessoa. Competência ocupava o primeiro lugar na lista da vida profissional e ficava em último na vida pessoal do mesmo médico. Muitos ficaram impressionados ao constatar que viviam de uma maneira diferente daquela que acreditavam. A tarefa chamou a atenção deles para esse fato pela primeira vez. Ao discutir os resultados, um surpreendente número de médicos afirmou que achava impossível viver com base nos valores que consideravam pessoalmente importantes. Como disse um dos entrevistados, "a vida nos faz menores". Porém, é claro, isso só acontece se você permitir.
Acredito que esse fato se aplica a nós todos. Muitas pessoas sacrificam diariamente a integridade em nome da conveniência. Inúmeros pacientes com câncer já me afirmaram que não diziam sempre a verdade por medo de sofrer rejeição ou alguma forma de perda, pois viviam e trabalhavam no meio de pessoas cuja visão de vida era diferente da sua. Tornaram-se invisíveis para sobreviver ou para manter sua posição na sociedade. Mas a experiência tem me mostrado que quando não vivemos de maneira coerente com nossos próprios valores, alguma coisa dentro de nós começa a se corroer. Podemos sobreviver, mas não viveremos plenamente, integralmente. Talvez a perda da integridade seja a maior de todas as tensões, algo que nos machuca muito mais do que a competição, a pressão do tempo ou a falta de respeito. Nossa vitalidade está enraizada em nossa integridade. Quando não vivemos inteiros, nossa força de vida se divide. Separados de nossos valores autênticos, nós nos tornamos fracos. Talvez seja por isso que quando nossa vida é ameaçada por doenças graves e instintivamente começamos a juntar nossas forças, nossos valores são quase sempre os primeiros a mudar.
É surpreendente observar com que frequência as pessoas deixam de perceber que seus valores mais profundos são tão únicos quanto suas impressões digitais. Quando não temos consciência disso sacrificamos determinadas coisas para obter o que os outros consideram mais importante. Aquilo que abandonamos para sermos considerados pessoas de sucesso pode acabar sendo muito mais importante para nós, pessoalmente, do que coisas às quais nos apegamos ou pelas quais lutamos. Às vezes é necessário um alarme como o câncer para nos trazer de volta a nós mesmos. A crise da doença pode nos libertar da vida que criamos e permitir que iniciemos um retorno à vida que é autenticamente nossa. E aquilo que descobrimos nesse momento não chega a constituir uma surpresa para nós.
Um de meus pacientes, um executivo diagnosticado com câncer, disse-me um dia: -   Eu sempre soube o que era importante. Apenas não me sentia no direito de viver de acordo com isso.
Harry era o administrador de uma grande companhia de seguros quando descobriu que tinha câncer de cólon. Sendo o primeiro de uma família de agricultores a freqüentar uma faculdade, desde o início ele tinha se tornado um aluno excepcional. Era conhecido em seu meio como um homem impetuoso, politicamente esperto e ambicioso, que fazia da carreira a sua própria vida. Seu câncer fora descoberto bem cedo e o prognóstico era excelente. Os colegas esperavam que reassumisse o trabalho bem depressa. Entretanto, dois dias após recomeçar, Harry abandonou seu cargo, surpreendendo a todos. A empresa imaginou que ele tivesse recebido uma oferta melhor, mas não era isso. Harry parou de trabalhar durante um ano. Depois comprou um vinhedo e mudou-se com a família para a propriedade. Nestes últimos cinco anos vem plantando uvas e fabricando vinho.
- Desde o instante em que acordei daquela cirurgia, Rachel, tive certeza, sem a menor sombra de dúvida, de que estava vivendo uma vida que não era minha. Sofri muitas pressões dos meus pais para alcançar o sucesso. Eles estavam muito orgulhosos por eu ter escapado da dura vida que levavam há tantas gerações. No início, eu me senti envolvido pelo desafio, querendo muito vencer. Meu pai era um agricultor, assim como meu avo e meu bisavô. Ele detestava o trabalho que fazia, mas eu sou diferente. Eu compreendo a terra. Ela é importante para mim. Conheço este trabalho como conheço a mim mesmo. Sinto que pertenço a este lugar de uma maneira que jamais senti em qualquer outro.
Nós nos sentamos na varanda de sua casa, admirando o imenso mar verde formado pelas videiras que dançavam gentilmente ao sabor do vento. Rosas contornavam a cerca da casa. O mundo dos negócios estava a anos-luz de distância. Como se pudesse ler meus pensamentos, ele me disse, com um sorriso nos lábios:
-   Meu lema costumava ser: "Faça do meu jeito ou desapareça". Eu me sinto muito orgulhoso de estar vivendo pessoal e profissionalmente, de acordo com os meus desejos. Foi difícil enxergar que eu tinha me vendido de uma maneira tão completa que nem conseguia perceber.
A busca da integridade é um processo contínuo que requer nossa atenção constante. Um colega médico, descrevendo sua própria busca da autenticidade, contou-me que vê a vida como se fosse uma orquestra. Lutar por sua integridade o faz lembrar do momento em que, antes do concerto, o maestro pede ao oboísta que toque um lá. No início ouve-se um barulho caótico, causado pelos músicos que tentam harmonizar seus instrumentos a partir daquela nota. Porém, à medida que cada um deles se aproxima do tom, o barulho diminui e, quando finalmente tocam juntos, há um momento de paz, um sentimento de volta ao lar.
-   É assim que eu sinto - ele me disse - Estou sempre afinando a minha orquestra. Em algum lugar dentro de mim existe um som que é só meu e eu luto todos os dias para ouvi-lo e para afinar minha vida por ele. Algumas vezes, as pessoas e as situações me ajudam a ouvir minha nota com maior clareza. Outras vezes, elas dificultam a minha audição. Depende muito do meu compromisso em querer ouvir e da minha intenção de manter-me coerente com essa nota interior. Somente quando estou harmonizado com ela é que posso tocar a música misteriosa e sagrada da vida, sem corrompê-la com minha própria dissonância, minha própria amargura, meus ressentimentos e temores. Quer estejamos ouvindo ou não, no fundo de nossos corações a nossa integridade canta. É uma nota que só nossos ouvidos conseguem perceber. Algum dia, quando a vida nos deixar prontos para ouvi-la, ela vai nos ajudar a encontrar nosso caminho de volta para casa.
Além de ter dito que essa história de vida só servia para compreendermos o que é contato com o Âmago, e não para definir o que é ludicidade, pois, caso contrário, pareceria que estou defendendo que a dor (no caso, um câncer) seria o caminho para estabelecer esse contato do qual vimos falando, importa, ainda, observar que o final da história deixa transparecer que o contato verdadeiro com o Âmago vai acontecer algum dia, quando estivermos prontos. Não! Ele acontece sempre e durante toda nossa vida, nos momentos em que nossa energia esteja ordenada ou reordenada, pára permitir esse contato, que pode ser fugaz, rápido, como dissemos acima, mas contato[3]. E, é isso que é importante.
Sobre a experiência da dor, que também pode nos colocar em contato com a Essência, talvez, pudéssemos dizer assim: a vida nos diz que, pela ludicidade, podemos estabelecer esse contato, mas, como somos recalcitrantes, a vida nos propicia um susto, que também pode ser curativo. Contudo, porque esperar por esse susto?
Encerrando esse texto, novamente retornamos ao nosso conceito de ludicidade como oportunidade de experiência plena interna, podemos observar que quem terá que fazer o percurso da experiência lúdica, para que ela seja plena, é o próprio sujeito da ação.
 Objetivamente, poderemos ter muitas descritivas e análises das atividades lúdicas, que são profundamente importantes para nossa compreensão das coisas, mas só o sujeito, enquanto vivente, poderá experimentar a ludicidade como experiência plena em seus atos; e como essa experiência pode nos tornar criadores e recriadores de nossa vida, de uma maneira mais saudável.
Poderíamos continuar nos servindo de múltiplos outros estudos para compreender o significado e o uso das atividades lúdicas na vida humana e na educação. Mas, por enquanto, fiquemos por aqui.





[1] Neste tópico, estarei me servindo bastante do estudos de David Boadella, no seu livro Correntes da Vida, já citado anteriormente.
[2] Para uma melhor compreensão dessa temática, pode-se ver, também, com muito proveito, o livro Anatomia Emocional, da autoria de Stanley Keleman, S.P., Summus Editorial.
[3] Essa observação sobre esse ponto da história foi levantado em reunião do nosso Grupo de Estudos, por Washington Oliveira, doutorando de nosso Programa.