X Colóquio internacional do LEPSI “ Crianças públicas, adultos privados”
V Congresso da RUEPSY – Rede Universitária Internacional em Educação e Psicanálise e
I Congresso Brasileiro da Rede INFEIES
V Congresso da RUEPSY – Rede Universitária Internacional em Educação e Psicanálise e
I Congresso Brasileiro da Rede INFEIES
Crianças públicas, adultos privados
A promoção social da infância é um fato incontestável. Em escala bem superior a de épocas precedentes, a criança recebe a atenção do discurso jurídico que organiza leis que a protegem contra os abusos dos adultos; a atenção do discurso científico que formula as leis de seu desenvolvimento e aprendizagem a serem respeitadas nas práticas que levam em conta a lida com as crianças; a atenção também dos interesses do mercado que agora veem nelas um potencial consumidor que, ainda que não tenham os meios próprios para a efetivação do consumo, podem ser hábeis na persuasão de seus pais.
Toda essa promoção social da infância, comemorada com razão pelas sociedades democráticas, enquanto representa uma vitória do Estado de Direito, nos autoriza a formular a expressão criança pública.
Mais que a expectativa, nasce a demanda para a criança pública, esquadrinhada por leis e saberes, para que ela fale deixando sua condição de infans, no sentido político do termo (infans, como aparece na figura do infante da infantaria, é aquele que não tem o direito de falar). Mas quem estará lá para ouvir?
No avesso da criança pública, propomos a reflexão, está o adulto privado. Privado não no sentido contemporâneo, de privativo, íntimo, mas no sentido de privação da coisa pública, como, aliás, era o sentido dado ao termo pelos gregos. O infans agora seria o adulto?
Frente a criança pública, caracterizada por seus direitos, encontra-se o adulto privado, caracterizado por seus deveres. Evidentemente que o potencial pernicioso do adulto em relação à criança existe e precisa ser coibido. Na tradição psicanalítica, desde Freud passando por Lacan, Dolto e vários outros a questão foi analisada com rigor, sobretudo na investigação dos vestígios deixados pelo desejo dos pais na alienação inevitável da criança a estes.
Seria preciso pensar essa questão dialeticamente: o esquadrinhamento da criança pública gerou como efeito colateral a criação de um superego educativo para os adultos. Infantilizados pela obediência regulamentada a preceitos, mas também, enquanto professores convocados a se formar eternamente nos cursos que visam sua melhor adaptação à criança pública, serão esses adultos menos perniciosos?
A expressão que dá o título a esse colóquio: crianças públicas, adultos privados, é uma franca paráfrase a célebre frase de Bernard Mandeville, publicada em 1723 em seu livro com título sugestivo: “A Fábula das abelhas” : “Vícios privados são virtudes públicas . Mandeville é considerado por muitos como o bisavô da ética utilitarista, forjada no seio da ideologia liberal e que encontraria sucessores como Bentham e Adam Smith, já bem mais conhecidos em nosso meio.
A ética utilitarista e a ideologia liberal são francamente dominantes no cenário politico atual. Os recentes acontecimentos em torno do tratamento ao autismo, em particular no Brasil e na França, são uma prova contundente disso. Sob o preceito de cientificidade das práticas, o Estado entendeu ser correto limitar o trabalho com autistas, seja ele de natureza educativa ou terapêutica, a somente aquelas práticas que tinham seus resultados comprovados cientificamente, segundo um modelo único de cientificidade. Toda a riqueza do debate epistemológico sobre a questão: O que é uma ciência?, que desembocou num consenso sobre a inadequação de se estabelecer um modelo único de cientificidade, assim como a existência de práticas que perduram há décadas graças a consistência e comprovação de seus trabalhos com crianças autistas, foram suprimidas em nome de uma ideologia utilitarista da rentabilidade.
A escolha da paráfrase no título, não é, portanto, gratuita. Ela serve para marcar a fotografia de um tempo dominado pelo neoliberalismo e para nos autorizar a colocar a questão sobre o laço educativo nessas circunstâncias: Se a criança está do lado da virtude enquanto o adulto do lado do vício, qual transmissão poderemos observar? Invertendo Santo Agostinho em sua versão da teoria do pecado original, poderíamos dizer que As crianças comem as uvas verdes e os adultos têm seus dentes irritados?
Neste colóquio atravessaremos temas que visam refletir desde a psicanálise os avatares da relação impossível adulto-criança, tal como ela parece ser tomada nas redes da sociedade neoliberal e utilitarista.
Maria Cristina Machado Kupfer, Leandro de Lajonquière e Rinaldo Voltolini
A promoção social da infância é um fato incontestável. Em escala bem superior a de épocas precedentes, a criança recebe a atenção do discurso jurídico que organiza leis que a protegem contra os abusos dos adultos; a atenção do discurso científico que formula as leis de seu desenvolvimento e aprendizagem a serem respeitadas nas práticas que levam em conta a lida com as crianças; a atenção também dos interesses do mercado que agora veem nelas um potencial consumidor que, ainda que não tenham os meios próprios para a efetivação do consumo, podem ser hábeis na persuasão de seus pais.
Toda essa promoção social da infância, comemorada com razão pelas sociedades democráticas, enquanto representa uma vitória do Estado de Direito, nos autoriza a formular a expressão criança pública.
Mais que a expectativa, nasce a demanda para a criança pública, esquadrinhada por leis e saberes, para que ela fale deixando sua condição de infans, no sentido político do termo (infans, como aparece na figura do infante da infantaria, é aquele que não tem o direito de falar). Mas quem estará lá para ouvir?
No avesso da criança pública, propomos a reflexão, está o adulto privado. Privado não no sentido contemporâneo, de privativo, íntimo, mas no sentido de privação da coisa pública, como, aliás, era o sentido dado ao termo pelos gregos. O infans agora seria o adulto?
Frente a criança pública, caracterizada por seus direitos, encontra-se o adulto privado, caracterizado por seus deveres. Evidentemente que o potencial pernicioso do adulto em relação à criança existe e precisa ser coibido. Na tradição psicanalítica, desde Freud passando por Lacan, Dolto e vários outros a questão foi analisada com rigor, sobretudo na investigação dos vestígios deixados pelo desejo dos pais na alienação inevitável da criança a estes.
Seria preciso pensar essa questão dialeticamente: o esquadrinhamento da criança pública gerou como efeito colateral a criação de um superego educativo para os adultos. Infantilizados pela obediência regulamentada a preceitos, mas também, enquanto professores convocados a se formar eternamente nos cursos que visam sua melhor adaptação à criança pública, serão esses adultos menos perniciosos?
A expressão que dá o título a esse colóquio: crianças públicas, adultos privados, é uma franca paráfrase a célebre frase de Bernard Mandeville, publicada em 1723 em seu livro com título sugestivo: “A Fábula das abelhas” : “Vícios privados são virtudes públicas . Mandeville é considerado por muitos como o bisavô da ética utilitarista, forjada no seio da ideologia liberal e que encontraria sucessores como Bentham e Adam Smith, já bem mais conhecidos em nosso meio.
A ética utilitarista e a ideologia liberal são francamente dominantes no cenário politico atual. Os recentes acontecimentos em torno do tratamento ao autismo, em particular no Brasil e na França, são uma prova contundente disso. Sob o preceito de cientificidade das práticas, o Estado entendeu ser correto limitar o trabalho com autistas, seja ele de natureza educativa ou terapêutica, a somente aquelas práticas que tinham seus resultados comprovados cientificamente, segundo um modelo único de cientificidade. Toda a riqueza do debate epistemológico sobre a questão: O que é uma ciência?, que desembocou num consenso sobre a inadequação de se estabelecer um modelo único de cientificidade, assim como a existência de práticas que perduram há décadas graças a consistência e comprovação de seus trabalhos com crianças autistas, foram suprimidas em nome de uma ideologia utilitarista da rentabilidade.
A escolha da paráfrase no título, não é, portanto, gratuita. Ela serve para marcar a fotografia de um tempo dominado pelo neoliberalismo e para nos autorizar a colocar a questão sobre o laço educativo nessas circunstâncias: Se a criança está do lado da virtude enquanto o adulto do lado do vício, qual transmissão poderemos observar? Invertendo Santo Agostinho em sua versão da teoria do pecado original, poderíamos dizer que As crianças comem as uvas verdes e os adultos têm seus dentes irritados?
Neste colóquio atravessaremos temas que visam refletir desde a psicanálise os avatares da relação impossível adulto-criança, tal como ela parece ser tomada nas redes da sociedade neoliberal e utilitarista.
Maria Cristina Machado Kupfer, Leandro de Lajonquière e Rinaldo Voltolini
http://www3.fe.usp.br/secoes/inst/novo/eventos/detalhado.asp?num=1875
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