Cipriano Luckesi (CONTINUAÇÃO)
Este material foi obtido através do website de Cipriano Carlos Luckesi
4. Algumas observações, ainda
Enquanto
anteriormente, eu citava um trecho de escritos passados meus sobre a
compreensão da ludicidade, dizia que uma “atividade lúdica poderia ser
divertida ou não”. A expressão “ou não” merece, minimamente, uma explicitação.
Como tenho
definido, reiteradamente, que a ludicidade é um estado interno de experiência
plena, importa observar que as experiências divertidas podem ser lúdicas, como
também não, assim como experiências não divertidas podem ser lúdicas.
Por exemplo, uma
atividade muito comum em grupos de pessoas, seja de crianças, adolescentes ou
adultos, é colocar alguém na berlinda e iniciar um processo de tirar o riso de
todos a partir de selecionar e ridicularizar um ato, um modo de ser ou uma
experiência dessa pessoa. Os apelidos, na maior parte das vezes, provêem dessa
experiência. Uma mulher alta recebe o nome de “garça”, um magro recebe o nome
de “palitinho”, e outros mais. Será que essas pessoas se sentem bem sendo assim
chamadas? Mas, todos continuam a chamá-la dessa forma, sempre achando graça; e,
quando a graça acabar, por hábito, a pessoa levará esse nome por muitos anos
ainda ou pelo resto da vida.. Ocorre isso também a partir de um gesto repetido,
de uma palavra fora do lugar, entre muitos outros. Todos riem e se divertem,
menos o indivíduo que é objeto da chacota.
As piadas, no
geral, são todas desqualificadoras. Será difícil encontrar uma que não o seja.
Além disso, existem “brincadeiras” praticadas socialmente, onde um será o
“pato”; todos sabem que ele vai cair no engodo, menos ele; e todos esperam,
silenciosamente, esse momento para rir dele. Isso se dá como na Crônica de
uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Márquez: todos sabiam que um
personagem ia morrer, menos ele. Aqui, a atividade pode ser dito que é
divertida (para alguns), mas nada lúdica, pois que alguém está excluído da
experiência, sendo vítima de uma experiência coletiva, sendo usado para tirar o
riso dos outros. Nessas experiências, há um “quê” de perversidade: alegrar-se a
partir da miséria alheia. Divertido, mas não-lúdico.
Por outro lado,
importa observar que a ludicidade não vem nem pode vir sempre do brincar, o que
não quer dizer que não possa existir um “brincar”. O brincar da criança é
brincar, o brincar do adulto é “brincar” é ter uma ludicidade de adulto, diversa
da ludicidade da criança. Certa vez, coordenava um grupo de trabalho com
atividade lúdicas. Uma participante lamentava não poder mais brincar como
brincava quando menina, com suas bonecas, de cazinha, com a despreocupação... Então, um outro participante do grupo
lembrou-lhe que agora, que trinta anos, ela brincava de outras coisas: tomava
decisões sobre sua vida, fazia sexo, ia para às festas sozinha, viajava,
trabalhava, ganhava seu dinheiro e o utilizava como queria, etc... Há
ludicidade nas atividades da criança e do adolescente e do adulto. São
experiências lúdicas, mas tendo por base atos diferentes. O que permanece é o
estado interno de alegria, de realização, de experiência plena. O ser humano se
desenvolve e, com o desenvolvimento, os objetos de ludicidade vão se
modificando, o que não quer dizer que um adulto não possa nem deva, um dia,
experimentar novamente brinquedos de sua infância e, isso, com ludicidade.
Dentro desta perspectiva,
ainda uma observação: trabalho e ludicidade. O trabalho na sociedade
capitalista se caracteriza exclusivamente como trabalho produtivo, ou seja, de
alguma forma, ele deve dar lucro, mesmo que seja com sacrifício da vida e de
seu significado, ou seja, pela alienação. No caso, o ser humano tem que
trabalhar para produzir mais capital, não porá realizar-se nos anseios de sua
alma. O trabalho como “valor de troca”, servindo ao capital, e não como “valor
de uso”, servindo à vida. Essa foi uma das importantíssimas descobertas de
Marx, ao estudar a sociedade capitalista.
Nesse contexto,
nós todos assimilamos a crença de que trabalho é sério, pesaroso; trabalho é
trabalho, ludicidade é divertimento. Existem muitas frases cotidianas, que nós
todos utilizamos inconscientemente, e que revelam essa crença de que o lúdico
não é sério: “Isso aqui não é brincadeira; é trabalho duro”; “Agora, acabou a
brincadeira, vamos para o sério”; “Aqui, nesse lugar, não se brinca, se
trabalha”. E outras mais, que cada um de nós pode catalogar. Em síntese,
trabalhar não pode ser lúdico, não pode trazer esse estado de experiência plena
de alegria interna.
Todavia, acredito
que o trabalho, fora da ótica capitalista, é lúdico, porque criativo e
prazeroso. Uma psicanalista chamada Lenore Terr escreveu um livro, que li numa
tradução espanhola, intitulado El Juego: porque los adultos necessitan jugar,
Editorial Paidós, Barcelona, onde, entre muitas outras coisas, ela trata da
relação trabalho e ludicidade, num capítulo cujo nome é: “El juego como
trabajo, el juego como vida”. Aí ela relata a entrevista que fez com o dono de
um restaurante, que, de alguma forma, passou a vida em torno da comida, como
menino indo comprar pão e imaginando como ele era feito, depois como pequeno
trabalhador dessa padaria, varrendo o chão e observando maravilhado como o pão
era feito; a seguir, trabalhando como garçon, o que lhe dava muita mobilidade e
alegria na vida. O “restaurante parecia-lhe uma atividade bastante lúdica” e,
com isso, ele também não conseguia dar-se conta de que a medicina ou a
advocacia poderia ser prazerosa e alegre para outra pessoa, desde que para ele
não parecia ser. E, então, ele decidiu que “a comida era aquilo que ia fazer
pelo resto de sua vida” e dedicou-se a ela; seus horários, suas práticas, seu
modo de ser e de relacionar-se, tudo estava em volta da comida. Gosto de
cozinha, gosto de amassar o pão, gosto do mercado, gosto de trabalhar sozinho
na cozinha, gosto de trabalhar com os outros, gosto de ensinar, gosto de
aprender --- essas foram expressões dele, no seu depoimento. Aqui, trabalho é
sério, no sentido de que é produz bens --- não do ponto de vista do capital,
mas do ponto de vista de produzir bens para satisfazer a vida --- e, ao mesmo
tempo, é alegre e lúdico.
A atividade adulta
no trabalho pode ser internamente lúdica; não é o trabalho que é não-lúdico,
mas sim o trabalho produtivo, no seio do capital. Parafraseando Marx, diria que
“trabalho é trabalho; ele só é produtivo, no contexto da mais valia, na
sociedade capitalista”. E, nesse contexto, no geral, não há e dificilmente
haverá ludicidade no trabalho: o horário de trabalho é o horário da empresa, as
regras são as regras da empresa, o modo de vida são os modos determinados pela
empresa, ou seja, o trabalho na sociedade capitalista é alienante e, por isso,
mesmo não-lúdico. Que tal tentar fazer do nosso trabalho uma experiência
lúdica, mesmo no seio da sociedade capitalista? É um desafio para todos nós
servirmo-nos das contradições e utilizá-las a favor da vida. São elas que
produzem o movimento de transformação.
Ao final, ainda
uma segunda observação: pareceria que a compreensão de ludicidade, aqui
exposta, conduziria ao individualismo e, por tabela, ao egoísmo narcísico. Caso
a experiência lúdica seja verdadeiramente lúdica, ela será translógica, porque
plena, para além de julgamentos e preconceitos; será integrativa entre os seres
humanos, desde que nesse nível de experiência, vivenciamos o Todo e nele não há
diferenças, não há formas melhores ou piores; é o Tao, onde todas as
coisas se dão e existem integradamente.
Caso possamos
viver essa experiência, estaremos fazendo contato como nossa Essência e, por
conseqüência, nos abrindo para a compaixão, não como um ato piegas, mas sim
como um ato de sofrer com (cum patior, do latim), de agir
com o outro, de viver em diálogo. De amar e ser amado --- essa
experiência profundamente exigente e política, na vida de cada um de nós.
Vale lembrar uma
última coisa: uma das quatro dimensões da experiência humana uma é a do Nós, a da convivência, dos valores
comunitários, da ética. As atividades lúdicas poderão ser praticadas
individualmente; não há dúvida quanto a isso; porém, há muito mais força,
quando são praticadas coletivamente. Muitas delas, “não tem graça”, quando
praticas por um indivíduo isoladamente. E isso, implica em fazer contato com a
Essência e, nesse contexto, com o outro. Esse é o lugar da compaixão.
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