sexta-feira, 9 de maio de 2014

LUDICIDADE E ATIVIDADES LÚDICAS: uma abordagem a partir da experiência interna (ÚLTIMA PARTE)

Cipriano Luckesi (CONTINUAÇÃO) 


Este material foi obtido através do website de Cipriano Carlos Luckesi 

4. Algumas observações, ainda

Enquanto anteriormente, eu citava um trecho de escritos passados meus sobre a compreensão da ludicidade, dizia que uma “atividade lúdica poderia ser divertida ou não”. A expressão “ou não” merece, minimamente, uma explicitação.
Como tenho definido, reiteradamente, que a ludicidade é um estado interno de experiência plena, importa observar que as experiências divertidas podem ser lúdicas, como também não, assim como experiências não divertidas podem ser lúdicas.
Por exemplo, uma atividade muito comum em grupos de pessoas, seja de crianças, adolescentes ou adultos, é colocar alguém na berlinda e iniciar um processo de tirar o riso de todos a partir de selecionar e ridicularizar um ato, um modo de ser ou uma experiência dessa pessoa. Os apelidos, na maior parte das vezes, provêem dessa experiência. Uma mulher alta recebe o nome de “garça”, um magro recebe o nome de “palitinho”, e outros mais. Será que essas pessoas se sentem bem sendo assim chamadas? Mas, todos continuam a chamá-la dessa forma, sempre achando graça; e, quando a graça acabar, por hábito, a pessoa levará esse nome por muitos anos ainda ou pelo resto da vida.. Ocorre isso também a partir de um gesto repetido, de uma palavra fora do lugar, entre muitos outros. Todos riem e se divertem, menos o indivíduo que é objeto da chacota.
As piadas, no geral, são todas desqualificadoras. Será difícil encontrar uma que não o seja. Além disso, existem “brincadeiras” praticadas socialmente, onde um será o “pato”; todos sabem que ele vai cair no engodo, menos ele; e todos esperam, silenciosamente, esse momento para rir dele. Isso se dá como na Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Márquez: todos sabiam que um personagem ia morrer, menos ele. Aqui, a atividade pode ser dito que é divertida (para alguns), mas nada lúdica, pois que alguém está excluído da experiência, sendo vítima de uma experiência coletiva, sendo usado para tirar o riso dos outros. Nessas experiências, há um “quê” de perversidade: alegrar-se a partir da miséria alheia. Divertido, mas não-lúdico.
Por outro lado, importa observar que a ludicidade não vem nem pode vir sempre do brincar, o que não quer dizer que não possa existir um “brincar”. O brincar da criança é brincar, o brincar do adulto é “brincar” é ter uma ludicidade de adulto, diversa da ludicidade da criança. Certa vez, coordenava um grupo de trabalho com atividade lúdicas. Uma participante lamentava não poder mais brincar como brincava quando menina, com suas bonecas, de cazinha, com a despreocupação...  Então, um outro participante do grupo lembrou-lhe que agora, que trinta anos, ela brincava de outras coisas: tomava decisões sobre sua vida, fazia sexo, ia para às festas sozinha, viajava, trabalhava, ganhava seu dinheiro e o utilizava como queria, etc... Há ludicidade nas atividades da criança e do adolescente e do adulto. São experiências lúdicas, mas tendo por base atos diferentes. O que permanece é o estado interno de alegria, de realização, de experiência plena. O ser humano se desenvolve e, com o desenvolvimento, os objetos de ludicidade vão se modificando, o que não quer dizer que um adulto não possa nem deva, um dia, experimentar novamente brinquedos de sua infância e, isso, com ludicidade.
Dentro desta perspectiva, ainda uma observação: trabalho e ludicidade. O trabalho na sociedade capitalista se caracteriza exclusivamente como trabalho produtivo, ou seja, de alguma forma, ele deve dar lucro, mesmo que seja com sacrifício da vida e de seu significado, ou seja, pela alienação. No caso, o ser humano tem que trabalhar para produzir mais capital, não porá realizar-se nos anseios de sua alma. O trabalho como “valor de troca”, servindo ao capital, e não como “valor de uso”, servindo à vida. Essa foi uma das importantíssimas descobertas de Marx, ao estudar a sociedade capitalista.
Nesse contexto, nós todos assimilamos a crença de que trabalho é sério, pesaroso; trabalho é trabalho, ludicidade é divertimento. Existem muitas frases cotidianas, que nós todos utilizamos inconscientemente, e que revelam essa crença de que o lúdico não é sério: “Isso aqui não é brincadeira; é trabalho duro”; “Agora, acabou a brincadeira, vamos para o sério”; “Aqui, nesse lugar, não se brinca, se trabalha”. E outras mais, que cada um de nós pode catalogar. Em síntese, trabalhar não pode ser lúdico, não pode trazer esse estado de experiência plena de alegria interna.
Todavia, acredito que o trabalho, fora da ótica capitalista, é lúdico, porque criativo e prazeroso. Uma psicanalista chamada Lenore Terr escreveu um livro, que li numa tradução espanhola, intitulado El Juego: porque los adultos necessitan jugar, Editorial Paidós, Barcelona, onde, entre muitas outras coisas, ela trata da relação trabalho e ludicidade, num capítulo cujo nome é: “El juego como trabajo, el juego como vida”. Aí ela relata a entrevista que fez com o dono de um restaurante, que, de alguma forma, passou a vida em torno da comida, como menino indo comprar pão e imaginando como ele era feito, depois como pequeno trabalhador dessa padaria, varrendo o chão e observando maravilhado como o pão era feito; a seguir, trabalhando como garçon, o que lhe dava muita mobilidade e alegria na vida. O “restaurante parecia-lhe uma atividade bastante lúdica” e, com isso, ele também não conseguia dar-se conta de que a medicina ou a advocacia poderia ser prazerosa e alegre para outra pessoa, desde que para ele não parecia ser. E, então, ele decidiu que “a comida era aquilo que ia fazer pelo resto de sua vida” e dedicou-se a ela; seus horários, suas práticas, seu modo de ser e de relacionar-se, tudo estava em volta da comida. Gosto de cozinha, gosto de amassar o pão, gosto do mercado, gosto de trabalhar sozinho na cozinha, gosto de trabalhar com os outros, gosto de ensinar, gosto de aprender --- essas foram expressões dele, no seu depoimento. Aqui, trabalho é sério, no sentido de que é produz bens --- não do ponto de vista do capital, mas do ponto de vista de produzir bens para satisfazer a vida --- e, ao mesmo tempo, é alegre e lúdico.
A atividade adulta no trabalho pode ser internamente lúdica; não é o trabalho que é não-lúdico, mas sim o trabalho produtivo, no seio do capital. Parafraseando Marx, diria que “trabalho é trabalho; ele só é produtivo, no contexto da mais valia, na sociedade capitalista”. E, nesse contexto, no geral, não há e dificilmente haverá ludicidade no trabalho: o horário de trabalho é o horário da empresa, as regras são as regras da empresa, o modo de vida são os modos determinados pela empresa, ou seja, o trabalho na sociedade capitalista é alienante e, por isso, mesmo não-lúdico. Que tal tentar fazer do nosso trabalho uma experiência lúdica, mesmo no seio da sociedade capitalista? É um desafio para todos nós servirmo-nos das contradições e utilizá-las a favor da vida. São elas que produzem o movimento de transformação.
Ao final, ainda uma segunda observação: pareceria que a compreensão de ludicidade, aqui exposta, conduziria ao individualismo e, por tabela, ao egoísmo narcísico. Caso a experiência lúdica seja verdadeiramente lúdica, ela será translógica, porque plena, para além de julgamentos e preconceitos; será integrativa entre os seres humanos, desde que nesse nível de experiência, vivenciamos o Todo e nele não há diferenças, não há formas melhores ou piores; é o Tao, onde todas as coisas se dão e existem integradamente.
Caso possamos viver essa experiência, estaremos fazendo contato como nossa Essência e, por conseqüência, nos abrindo para a compaixão, não como um ato piegas, mas sim como um ato de sofrer com (cum patior, do latim), de agir com o outro, de viver em diálogo. De amar e ser amado --- essa experiência profundamente exigente e política, na vida de cada um de nós.
Vale lembrar uma última coisa: uma das quatro dimensões da experiência humana uma é a do Nós, a da convivência, dos valores comunitários, da ética. As atividades lúdicas poderão ser praticadas individualmente; não há dúvida quanto a isso; porém, há muito mais força, quando são praticadas coletivamente. Muitas delas, “não tem graça”, quando praticas por um indivíduo isoladamente. E isso, implica em fazer contato com a Essência e, nesse contexto, com o outro. Esse é o lugar da compaixão.


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